sábado, 23 de março de 2019

curta-metragem

para o meu pai

(voz off)

um rosto não abre a pedra a novas memórias
dever-te-ia ter dito antes que se te descessem
os cenários das mil e uma
noites da tua vida sobre nós

(fade in)

olhar de criança e um corpo que se arrasta
como uma rede farta de peixes a sufocar
boca aberta repetindo
o que já quase ninguém ouve
num mesmo sufoco essas histórias
batidas uma e outra vez à exaustão
                                                               sentou-se e este ouvido atravessou
a teu lado o teu rio

são também já quase meus os relatos
de tanto te escutar ocupam
parte do meu coração e num ouriço
para aqui vêm          por exemplo         de Angola
e a liberdade dos pés bola e calções
à prisão da flanela e da pedra quente
enrolada em jornal e trazida ao peito por Lisboa

viajo na tua odisseia enquanto filho
e sendo todos os fantasmas que te habitam saltando
de vida para vida e sou teu irmão
e algum amigo entretanto morto
e um companheiro de revelia
para de novo voltar o meu rosto
ao meu rosto num piscar de olhos

(slowly fade in to black)

um dia nenhuma máscara me servirá
qualquer filia apagar-se-á          o ecrã
encher-se-á de sombras brancas
a luz de luz como a noite
de noite           o que te direi serão ecos
a caminho de mais esquecimento

(fade out)

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