sexta-feira, 27 de julho de 2018

hagiografia

não me tomem por anjo fui uma criança
cerzi o espaço entre o bem e o mal outrora
aberto a papel e tinta e assinatura de um corpo maior

arredei gavetas cheias de notas esparsas
roupa em campos de alfazema eucalipto naftalina
um segredo nesse tempo era uma semente
num fruto que se comia todo até a ela chegar
e depois deitada fora sem pudor
cuspida para acertar no horizonte

desvendei a luz por fechaduras e estores
mal corridos         o mundo por entre os dedos           os meus
espeleólogos dos buracos e covas
da carne lentamente tornada própria

aos nove apaixonei-me pela pequena morte
numa orgia entre as mãos e a imaginação
mergulhado numa piscina           aprendi a celebrar
a vida aguardando a chegada do feminino
e a sua arte de tornar-me caça num olhar
breve perseguido até hoje pelos cães
do desejo e do inferno

também o álcool se verteu na garganta
no seu baptismo de fogo líquido
                                                          abriu as portas do riso e da paranoia
e do sono esquecido de sonhos

a graça era dita à mesa ou nos corredores
no jogo de escondidas às claras
como a leitura pornográfica
em revistas nas casas de banho

introduzi-me no sexo ouvindo
as parábolas de cristo nas aulas
de religião e moral          assombrado
na escuridão da sala os olhos nos slides
daquela vida         um prego pespontava dos jeans
agarrado como um ramalhete
pelas mãos das raparigas em flor
e a minha nas suas bocas
venusianas babadas que à luz
me renegaram por dez anos

fui um esmerado atleta da ruína
acrobata da vida tantas vezes no limiar
de uma dependência         um coro babilónico
no pensamento ou um silêncio atroador
fizeram-me crer na possibilidade
da escrita como ponte ou Virgílio
alumiando esta subida invertida
até percorrer meio a vida que me coube

hoje dos escombros de desilusões
o anjo da história toma-me a mão
também o seu vento me leva
distancia-me das coisas e de mim
como uma árvore do seu fruto
e da natural podridão se alimenta
                                              erguendo-se como obra imensa e alheada
de olhares que passam (a)traídos
pelos mais pessoais abismos

e ainda admiro o espectáculo dos escombros
a sempre prometida mão que dá uma volta à matéria da terra

esses anos ensinaram-me a saber perder-me
e o contentamento de escutar o mar
sorver a plenos pulmões a aridez do litoral
de pinheiros giestas         interpretar
o poema do teu rosto que nenhum livro
entende          enfim que a queda
é uma paralaxe um passo
entre duas tomadas de decisão
levando-me até ti e este poema

2 comentários:

momonu disse...

muito bonito este poema
amei a palavra cerzi
um grande abraço querido atleta!
nuno messias

fernando machado silva disse...

hey nuno! esta agora é que não esperava! um grande abraço para ti e beijos à patrícia!