quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Robert Walser



Título: Os irmãos Tanner
Autor: Robert Walser
Editora: Relógio d'Água
Tradução: (quando receber o livro de volta de um dos meus irmãos direi de quem foi)

          A relação da literatura com a viagem é intricada; e a questão vai bem para lá do estabelecimento de um género, como já existe, ou mesmo a consolidação de uma disciplina no seio dos estudos literários, mormente na literatura comparada. Literatura e Viagem encontram-se na sua «origem». É certo que a literatura, como conceito, surge somente no século das Luzes, porém esse momento não será outro que a sua cristalização, a constituição do seu reino. Muito antes desse acontecimento, anterior à fixação física em papel, a oralidade constituía o meio fluídico da «arealidade» do que veio a ser a literatura, a via andarilha, viajante dos mitos até à sua queda na profanidade. Basta lembrar a “Odisseia” ou “Ulisseia”, como deveria ser reconhecida; não só há a viagem de Ulisses e seus companheiros, como a narrativa mítica desse herói percorreu a península ática de boca em boca. Literatura e Viagem são, muito possivelmente, sinónimos. A viagem, exterior ou interior, é o próprio material de toda e qualquer literatura, é a articulação da experiência estética do tempo e do espaço segundo o esquema ou a ordem dos signos linguísticos; e ela nada mais é, a viagem ou a literatura, que dar corpo à imaginação, que tanto pode partir da mais baixa realidade à mais pura fantasia a partir dos dados da realidade.
          O mês passado falei-vos de um mestre andarilho, hoje falarei de outro: Robert Walser (1878-1956). Descrever a sua biografia levar-nos-ia demasiado longe e atrasar-nos-ia a apresentação deste singular romance “Os irmãos Tanner”. Demais a mais, a sua vida, bem como a sua obra, a partir dos anos setenta do século passado, tem vindo a conquistar uma atenção bem merecida após o silêncio a que foi remetido no fim da década de 1920. Basta, para já, traçar alguns apontamentos da sua singularidade, sublinhando aqueles que indiciam alguma relação com a presente obra: nasceu na Suíça no seio de uma família numerosa, até ao fim da sua vida foi um caminhante incansável (a sua morte, aliás, ocorreu durante um passeio nocturno), nunca conseguiu ter um emprego fixo nem uma única morada, sempre no limiar da pobreza; cedo demonstrou sinais de insanidade, com alucinações auditivas. Porém, nunca parou de escrever, reduzindo a sua escrita a uma dimensão milimétrica, denominada de “microgramas”, hoje acessível na edição “Da área do lápis” (ainda por traduzir em português).
          “Os irmãos Tanner” trata da relação de três irmãos, dois homens e uma mulher, com o mais novo, Simon, um jovem que tanto se entusiasma com um trabalho ou ofício, como logo a seguir se desilude e procura por todos os meios dedicar-se à contemplação da inocência, da natureza, do espanto de estar vivo. Embora a sua relação não seja totalmente turbulenta, mais com o irmão mais velho, um banqueiro, do que com a irmã, professora, ou o outro irmão, pintor, talvez mais próximos de uma realidade chã, ou menos técnica e burocrata, quer com a criança, que Simon parece não querer perder de si, ou do gesto criativo da natureza, cada um estabelece uma posição de choque entre o indivíduo inserido na sociedade e aquele que lhe quer escapar mas sabendo-se obrigado moralmente. Simon concorda de facto com essa moral, todavia, assumi-la, afirmá-la levaria à perda de tudo que para ele é belo e digno, a liberdade, a beleza que nada mais pede senão a sua contemplação.
          “Os irmãos Tanner” é decerto, como asseveram os teóricos, um «romance de aprendizagem» (Bildungroman), mas não menos a intricada relação da literatura com a viagem no seu aspecto mais cru, na fronteira entre o exterior e o interior, no espaço e no tempo: a viagem de um homem ao coração da sua vida.

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