quinta-feira, 13 de junho de 2013

Paul Bowles - 5 poemas

ELEGIA

Tudo é demasiado tarde
Não somos dignos uns dos outros
Abri-vos portas rangei portas é demasiado tarde
Tudo é indigno de tudo
Vinde lagartos de aço saltai sobre todos nós
É demasiado tarde
Tudo acabou e todos chegámos demasiado tarde
Deixa-me fazer-te compreender
Deixa-me fazer mortalhas de linho para todos vós
Deixa de lutar contra a verdade
Deixa-me estrangular-te suavemente
Deixa-me desmembrar-te habilmente
As mortalhas de linho estão na moda este ano
Os lagartos de aço são o único método seguro de desmembramento
As urnas de cobre são o único método limpo de libertação
Não vês que todos chegaram demasiado tarde
Não ves que todos têm de entregar-se a mim
Linho e lagartos
Nenhum de nós poderá morar nesta planície
Não há outra saída senão o estrangulamento
Reclina-te simplesmente nesta rocha à luz do sol
Segura a tua cabeça
E submete-te às minhas mãos suaves
É a única saída
É demasiado tarde

*

SIDI AMAR NO INVERNO

Penso que nunca vi o teu rosto
Num dia de chuva, quando as sombrias artérias do céu
Pulsam junto às árvores, e no teu coração
A água corre. Nunca te vi chorar
Com o monólogo da noite, com a tua mente resistindo ao silêncio.

Chegará o dia em que as linhas do céu
Se desprenderão das torres
E em que tu, que tremes pela noite
Partirás para os lugares sombrios ao lado de um desconhecido.

*

CENA VI

É culpa tua que só amemos o crânio da Beleza
Sem sabermos quem era ela, e de que morreu.
Temos a culpa do ladrão, mas não o saque,
O esgar do mentiroso que nunca mentiu.
O gafanhoto doente arranha a sua canção ferida,
Com o tóraz parcialmente destruído.
Vomitar é proibido. Fica mal.
O assassino não sente nenhum ódio que possa evitar.

Agora as moscas mordem mais onde a pele está rasgada.
É o triunfo da doença. Lesões. Em breve surgirão os tumores.
As plantas incham e estremecem, as sementes agitam-se.
«Querida, é violenta a pancada na tua cabeça. Tem cuidado.»

*

CANÇÃO DE AMOR

A cabeça está onde o grilo canta
As faces são aquilo que os dentes hão-de morder
O lago está onde o amante se atira
Ao outro pela calada da noite
Os lábios estão onde está o sangue
Os olhos são o que os dedos prendem
Sabendo agora o que podia ter sido
Dirão os lábios o que os olhos viram?

*

NOITES

Tempos houve, aqui ou além,
em que o murmúrio das palavras não era suficiente.

Em alguma estante da memória jaz um Verão perdido,
um que não guardámos para saborearmos um dia.
Certamente acabou depressa, com inesperados nevoeiros,
com o vento a deslizar pela incomensurável escuridão.

Nenhuma voz podia ser suficiente, aqui ou além,
e as horas caindo velozmente.


in Paul Bowles, Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, col. documenta poética, trad. José Agostinho Baptista, 2008: 11-13, 79, 93, 101 e 129.

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