segunda-feira, 4 de março de 2013

Hermann Broch 2



Título: A morte de Virgílio
Autor: Hermann Broch
Editora: Relógio d'Água
Tradução: Maria Adélia Silva Melo


          Um dos meus melhores amigos escreveu uma canção onde procurava descrever a imagem que tem de mim; e nela, num verso, diz que amo pouca gente, mas como deve de ser. Talvez até seja verdade, que o digam as pessoas que se sentem amadas por mim. Eu cá penso sempre que estão enganadas se mo dizem. Que querem? Sou um desesperançado e sei que nada há de bom nisto que eu sou. Porém, poderei dizer: sou um homem de poucas paixões, no seu sentido mais lato; e elas são-me caras e, talvez por isso, tanto me custam e sofro por elas, não fossem elas paixões. Nunca me chamaram Ismael e Achab ainda não mostrou o seu rosto, só ouço o seu trôpego coxear na cabine do meu coração. Por outras palavras, sou um romântico naufragado, isso já o ouvi muitas vezes, quase todos mo dizem: és um romântico.
          Todavia, só há dois ou três anos percebi, um pouco mais claramente, o que é isso do romantismo; li e estudei alguns dos seus conceitos mais problemáticos e de romântico terei, infelizmente, o que se diz do senso comum ou da boca de Toni de Matos – como não ser um desesperançado? E outras passadas de madeira ressoam na cabine. Um deles, o Sublime, para dizer a verdade, só quando terminei a leitura desta última obra de Hermann Broch, que nada tem a ver com o romantismo, se me tornou visível no que respeita às obras de arte. Eu percebi – que arrogância, dir-me-ão – teoricamente, porque relacionei com as minhas próprias experiências, esse salto moral que se desencadeia na observância de qualquer coisa que nos excede: uma cordilheira montanhosa com seu véu de nuvens lentamente a correr como um lençol branco e vetusto, em Marrocos; ondas bravíssimas entrando pelas veias citadinas de uma ilha, nas Lajes do Pico; uma pequeníssima aranha preta passeando-se pela minha mão sublevando a tristeza de um dia, ou o teu sorriso meu amor... mas encontrar numa obra de arte, digamos num livro, mesmo dos dois únicos que me fizeram chorar, nunca pude dizer: eis o Sublime. Hoje posso, está aqui.
          Esta é a narrativa dos últimos dias de Virgílio, começada com a viagem de barco desde a Grécia, onde contraiu malária, aportando em Brindísi e lá morrendo. É uma obra intensa onde se juntam a poesia e a filosofia, o monólogo interior, o questionamento sobre a vida e a morte, o sentido da criação, em geral, da escrita, em particular e, em singular, da Eneida, que o poeta romano queria queimar. Estruturalmente compõe-se quase como um painel da Paixão, no qual cada parte é uma dolorosa peregrinação atravessando os elementos que fundam o mundo, constantes quedas até chegar ao etéreo onde tudo, cada coisa, é uma informe mistura e, simultaneamente, singular. Nunca antes, como durante estas páginas, senti ser eu quem monologava, alucinava, questionava o valor de cada coisa que me rodeia, que toquei ou me toca.
          Estas palavras nada dizem; e nenhuma será suficiente porque se envergonharia só pela tentativa de se interpôr entre o livro e o leitor. E se eu fosse romântico, um verdadeiro romântico, tendo construido uma nova mitologia, Broch seria o meu anjo do silêncio, esse que me velaria a boca com uma mão enquanto a outra me prendia as minhas, para somente escrever ou dizer o que realmente daria mundo ao mundo.

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