quarta-feira, 23 de maio de 2012

Miguel-Manso - 5 poemas

CASAMANSA

pôr em ordem o século sobre
um tabuado que depois de tantos anos veio a servir
de pão ao bicho do poema

morde, engorda verso a verso
no rodapé da sala, na mesinha pequena de alguma cabeceira
na ombreira de um ombro antepassado

depende de onde se olha o parecer ruína
da hora do dia, da navegação da luz pelas janelas
e que, de estrofe em estrofe, pousa
sem fulgores, na poeira do sofá de napa
rasgado no braço

o poeta (este destroço que braceja) arrasta
uma cadeira de um lugar a outro, demole com a vassoura
o emprório aracnídeo sobre a porta, pretende
devolver à casa o verniz do domínio, resolver
um problema de habituação

no que foi a horta, reúne ao centro o mato
que arderá pelas chuvas, quando enfim liberarem as queimadas
usa o ancinho - na horta, no texto - com a mesma ignorância
(tanto num como no outro crescerá outra vez

e com mais força, a erva ruim)

tudo isso de manhã, em silêncio
e mudo, pela tarde, apertando desapertando parafusos
entornando lixívia nos ralos, a varrer as frestas e os cantos
a picar o reboco solto do passado

mãos desfechando uma tomada eléctrica fixa na parede
o belo efeito de um poeta electrocutado, correndo pelo corredor
a abraçar - num delírio telúrico - a laranjeira do quintal

o sangue escorre-lhe do nariz, o Verão: tudo dá
uma corzinha a esta anemia pegada

pela noite, cansado, as mãos magoadas
das tarefas, o texto nem por isso mais aviventado
a casa nem por sombras habitável, deita-se

sempre a tantos quilómetros do amor

*

A VIDA RURAL MODERNA, LIVRO PRÁTICO

ao pé do muro o silêncio não é como no poema
voa de entre as silvas e os cactos, perturbado
e em casa o ruído das alfaias do meu estudo carcome
ouvidos, coração, desde a esbaforida manhãzinha

é de sombras a preguiçosa lentidão aldeã
com que me sento ao pé do muro sob as folhas, a buscar
na silvestre província o isento vigor de um instante

tarde monossilábica, mistério protocolar da vida
de numerosas causas é o sossego ao pé do muro, germinado
de dúvidas ao poente do mundo, na canção leiloada pela ave
no perfume esmeralda e menta da ébria hortelã

arde o tabaco envolto em papel de arroz
tudo se surpreende ainda na ignição de Julho
longe a trôpega voracidade humana, menos longe
a fundeada biblioteca que medra na sala ilustrada
lareira da casa todo o ano acendida

ainda que pudesse decifrar aí o que nunca
entenderei sentado ao pé do muro, enxergando pinhos
afigurando o citro amargo de um dia engolido
no mais côncavo desenredo de uns versos

*

NEM TANTA COISA DEPENDE

preferes o canto, o lugar oculto
a folhagem, a sombra, o quarto, este
saco de trigo: ouro de um texto
sobre a velha escrivaninha do real

lá fora o clarão do arvoredo
atalhos para a tingidura da paisagem
cá dentro menos caminho, outro

panorama: a presença tão-só
desabitada de uma pessoa, mistério sem
atributo ou função

sempre a desfeita de um coração
o cultivo intensivo das figuras
e sobram tristeza e dias ao corpo que escreve
no calabouço de uma manhã muito larga

reluzente de gotas de mel
enquanto os gatos lambem o sábado
e sentado, sapo de ouro, permites-te pôr no mundo
(mas porquê) outro poema

*

DEPOIS QUE ME PARTI

ilustração chã do planeta
pouco préstimo teve este aguaceiro

reservatório de enganos
em tão opaca agra e degredo, a poesia
escuríssima nuvem no-la encobre

nula grandeza a de um texto
vai pelas gentes com uns chorados
mais leves que ao vento canas

em que trilho, com que rastro
por que abertas

mal ter vindo, mal ter ficado

*

ANTICENA

acreditei que talvez a poesia me
pudesse salvar

mas não vai acontecer: está fora
dos seus termos outra coisa que não seja
arredondar ainda mais esta
triste tristura


cunhar com luz e escuridão a grosseria
das figuras (eu, o mundo)


in Miguel-Manso, Ensinar o Caminho ao Diabo, Lisboa, ed. autor, 2012: 72, 77, 78, 88 e 93

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