sexta-feira, 29 de abril de 2022

notas sobre o assentar das areias (conclusão)

ela vem. uma vez mais os caminhos se cruzam e correm assimptotos, numa dança de encontros e desencontros. eu sinto esta terra, a vida que a povoa, eu vejo a desfiguração. serei alguma vez perdoado?
pelas hecatombes para saciar o medo da noite, dos fogos bravos, das tempestades que alagavam os campos de trigo e aveia, serei alguma vez perdoado?
pelas mães e filhas violadas para o ouro, o leite, a carne, as pedras mais preciosas que a vida, por um pedaço de terra dessas mães e filhas, serei alguma vez perdoado?
pelos aguilhões, as cordas, os ferros, o cabedal rompendo a pele, impregnados de sangue e suor, serei alguma vez perdoado?
pela absurda produção de toda e qualquer vida subjugada para um troço de carne podre preservada por antibióticos, repleto de mercúrio, serei alguma vez perdoado?
pelo luxo, a vaidade, a tradição, serei alguma vez perdoado?
pela minha ausência, a minha distância, a minha selectiva ignorância, por recusar a participação e a escolha, por perpetuar os horrores com a conivência silenciosa, a cegueira de palas, a surdez isolante, a importância do meu tempo, a desatenção, o embrutecimento das mãos, da língua, do coração, serei alguma vez perdoado?

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