segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O trabalho e as noites (vii)

tive uma coisa elementar
nas mãos         pura como água
de uma nascente         próxima
como o fogo do coração

um instante precioso
quando as luzes se encontraram
por trás dos olhos

e eras tu e era eu

levaram-ma com ferocidade
e mãos de luva

um musgo cobria o caminho do ar

eu não percebia
as vozes         o que diziam

ela plena no feminino com a sua entrada
na maternidade estava estendida
como no matadouro
metade viva e lúcida metade
natureza morta         aberta
terra para a colheita

eu não percebia
as vozes         que pediam
me desse ao abandono

metade da minha vida
a mulher com o corpo tomado por tremuras
e lágrimas e suor e sangue

e eu não percebia
o abandono da metade
da minha vida

corri por corredores para estar ao alcance
dessa coisa elementar
levada em mãos de luvas para o frio
de máquinas e máscaras

cercaram-me o caminho do coração

e eu não percebia
as vozes         que esperasse uma vida mais
mais longa que o esperado         num quarto
onde nem o mundo me consolava com a sua beleza

as primeiras horas foram a lição do abandono

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