quarta-feira, 27 de março de 2019

Galway Kinnell - X. Ultimidade


1
As magras cataratas, atalhos
vagando do céu, batem
na ravina, saltam, e arrepiam-se.

Algures atrás de mim
um pequeno fogo permanece aceso à chuva, nas cinzas desoladoras.
Não interessa, agora, para quem foi feito,
mantém as suas chamas,
aquece
quem se atreve a caminhar até à sua radiância,
uma árvore, um animal, as pedras,

porque no mundo moribundo foi acendido.


2
Um urso negro senta-se sozinho
no crepúsculo, balançando a cabeça de um lado
para o outro, dando lentamente voltas e voltas
sobre si, esfregando o círculo
quadrúpede na terra. Ele cheira o suor
na brisa, ele concebe
uma criatura, uma criatura-mortífera
observa do limiar das árvores,
finalmente ele percebe
eu não estou mais aqui, ele próprio
do limiar das árvores observa
um urso negro
levantar-se, a comer algumas flores, afastando-se,
todo o seu pêlo cintilando
à chuva.

E que cintilar! Sancho Fergus,
meu rapazola, tinha uns belos ombros,
quando nasceu a sua cabeça
saiu primeiro, o resto ficou preso. E ele abriu
os seus olhos: a sua cabeça ali sozinha
no quarto, semicerrou os olhos com dor,
ao fim de nove meses mal tinha os olhos descolados
o sangue chapinhando debaixo dele
no chão. E quase
sorriu, pensei, quase perdoou tudo antecipadamente.

Quando todo ele saiu
tomei-o nos meus braços e dobrei-
o e cheirei
a penugem negra e cintilante
da sua cabeça, tal como o espaço vazio
deve-se ter dobrado
perante o planeta nascituro
e cheirou as pastagens e samambaias.


in Galway Kinnell, The Book of Nightmares, Houghton Mifflin Company, Boston & New York, 1971: 71-72

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