segunda-feira, 3 de setembro de 2018

o poema às cinco da manhã

ainda a manhã era indefinida
estagnada entre o fim
da noite e o tímido surgir
da estrela que nos dá vida e queima
a floresta abria-se para o passo
e o canto das aves emudecido
pela névoa de agosto era tudo
o que a realidade oferecia
estou tranquilo com a certeza de um pé
na morte e outro na erva molhada

a esta hora apaixono-me pelo silêncio
e a quietude à medida que cessam as últimas
ondas cada vez mais espaçadas
de um momento demasiado intenso
para os sentidos do corpo
mergulho um pouco mais nesse espaço
até imergir por completo como no mar
deixa-te-aí ficar digo até que despertes
como em água o pulmão te traz ao ar

mas eis que chega a roda-viva –
percebo isso chico e como porta
tudo o que importa para lá –
com razões e obrigações que vêm
de outros há anos como máscaras
e fatiotas que antes fossem de arlequim
abrem ao invés fossas por onde escoa
o elo agrilhoado do impessoal
reanimado às cinco da manhã deste poema
enquanto os meus olhos encontram os d' «a minha» cadela

vem na aurora a estafa a pedra pela montanha
acima o mundo às costas e um acre gosto
sobe à boca à semelhança de um sono
breve e me visto de tristeza e solidão
esqueço a língua portuguesa menos
no pensamento           abraço esse silêncio
recupero-o com japa e o coração endereçado
a ti como um único botão num ramo calcinado
caído entre cinzas          um gesto
talvez comum para um português no verão

mas que sei eu de essências às cinco
da manhã à chuva do fim de agosto

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