quarta-feira, 14 de junho de 2017

Jean-Luc Nancy - Noli me tangere (cap. Maria de Magdala)

Maria de Magdala – de quem fizemos «Maria Madalena» –tem todas as razões para ser a primeira a quem o ressuscitado se mostra, ainda que para lhe escapar imediatamente, e todas as razões também para ser aquela que ele encarregou de ir anunciar o que ela viu, ou o que crê ter visto.1
De duas maneiras a história de Maria de Magdala segundo a vida de Jesus anuncia o encontro frente ao túmulo aberto.2 Por um lado, ela é a irmã de Lázaro e é ela quem se precipitou para Jesus para que traga o seu irmão à vida. Já então ela mostrou que confiança punha no seu Senhor: não a crença com a qual alguns consideram os supostos taumaturgos, mas a segurança disso, que o morto pode ainda erguer-se e caminhar, que na verdade ele não deixa de fazer, como fazem todos os mortos pois todos caminham com os vivos. Os mortos estão mortos, mas enquanto mortos eles não deixam de nos acompanhar, e nós não deixamos de partir com eles. Partir para lado nenhum: partir, absolutamente, ir ao fundo do túmulo até ao fundo sem fundo de onde não se deixa de avançar sem que por isso se faça caminho a qualquer destino.
Caída aos pés de Jesus, Maria disse-lhe: “Senhor, se tu houvesses estado aqui, o meu irmão não estaria morto”. Ela faz eco dessa maneira, sem o saber, com a frase que Jesus disse um pouco antes à sua irmã Marta: “Eu sou a ressurreição”.3 Na sua presença, a morte não se pode restringir à cessação da vida: ela torna-se na vida mesma na iminência interrompida da ausência.

Mais tarde, Jesus retornou a Betânia e jantou com os seus discípulos, Marta, Lázaro e Maria. Esta tinha consigo um perfume precioso para untar os pés de Jesus, antes de os secar com a sua cabeleira. Um dos discípulos, Judas,4 culpou-a por ter desperdiçado esse perfume no lugar de o dar aos pobres. Jesus respondeu: “Deixa-a guardar isso para o dia do meu sepultamento”.5 Maria Madalena está desde então na proximidade da morte em geral, como também a de Jesus. Ela que, num outro episódio também ele bem conhecido, tinha «escolhido a parte boa»6 permanecendo sentada junto do mestre no lugar de se activar como sua irmã Marta às tarefas domésticas, ela é aquela que sempre distingue, compreende e escolhe a parte que não é deste mundo. Que ela seja depois disso considerada como uma mulher de má vida7 responde a este paradoxo: a “boa vida” não é aquela que se conforma com os bons modos (pode-se também pensar na mulher adúltera, no filho pródigo, etc.) mas aquela que nesta própria vida e neste mundo fica igualmente na proximidade daquilo que não é deste mundo: desse fora (dehors) do mundo que é o vazio do túmulo e o vazio de deus, o vazio aberto em deus ou melhor como o próprio “Deus” no dar à luz ao mundo do homem, no dar à luz ao mundo do mundo.
Maria Madalena é aquela que mais ostensivamente tocou Jesus, untando-o de perfume – unção que responde ao título de “cristo” (ungido, messias) mas fá-lo nesse modo em suma invertido (paródico? crítico? desconstructor?) em que o óleo santo é trocado por um perfume sensual e em que a unção se faz sobre os pés e não sobre a cabeça. Unção verdadeira, pois, unção que previamente terá embalsamado o corpo de Jesus, antecipando a sua morte e a sua ressurreição, antecipando o seu corpo glorioso em conferindo-lhe ao longo da sua vida a glória insensata (insensée) de ser perfumado por uma mulher galante.

(Rembrandt)


Rembrandt, ainda ele, é talvez o único dos pintores, senão a ter-se lembrado do episódio do perfume, pelo menos a ter sabido relembrá-lo na cena do túmulo. Pois que entre de quaisquer outros pintores do Noli... Maria Madalena está acompanhada do vaso do perfume, que é também um dos seus emblemas canónicos nos quadros em que está só (Madalena penitente, etc.), como em Raggi, Juan de Flandres ou Fontana Lavínia, e se esse vaso está igualmente presente em Rembrandt,8 ao invés esse último é o único a evocar o caso do perfume colocando perto da mão esquerda da mulher a perna e o pé estendidos de um dos anjos, como disposto para ser lavado e secado.9 Por causa da pose do anjo e da substituição deste último por Jesus, a alusão não está longe de ter um carácter jocoso (joueur) ou estar disposto como um piscar de olho. Mas ela não tem menos, ou ela tem bem mais, um carácter particularmente elaborado: o pé que a mão da mulher poderá tocar sai do túmulo, ou ainda mais marca o limiar. A mão, o pé, o vaso e uma vez mais o corte de separação entre sombra e luz (sobre a franja do túmulo) assemelham-se neste ponto do quadro àquilo que relaciona a sua cena com a da unção: “Não me toques pois tu já me tocaste e guardo para mim teu perfume, tanto como ele me mantém na morte, tanto como teu embalsamento me mantém morto e mantém essa verdade insensata do túmulo; não me toques, está feito, teu perfume precioso foi espalhado, deixa-me partir e vai por teu lado anunciar que eu parto”.

(Ticiano)

Não se deveria omitir relembrar, também, que as especiarias e os perfumes, no contexto da sepultura, estão destinados a prevenir aquilo que Dostoievski chamou de “o odor deletério” em Os irmãos Karamazov. Ora, foi dito de Lázaro que, ao quarto dia após a sua morte (um dia a mais que Jesus...), “ele já cheirava”. Jesus, ele, não cheirou. O perfume de Maria Madalena libertou previamente o seu “odor de santidade”, que é um outro aspecto do corpo glorioso.10 O insensato de Nietzsche escreve-se: “Ainda não sentimos nada da decomposição divina?... Os deuses também se decompõem! Deus morreu! Deus continua morto!”.11 Deus permanece morto, sem qualquer dúvida – mas é precisamente dessa putrefacção divina que se separa, no seu princípio e no seu incessante movimento de auto-descontrucção, essa morte de Jesus que não faz reviver Deus, não mais que qualquer homem: ela fala de uma outra morte e de uma outra vida, de uma anastasis ou de uma glória12 que formariam como o cheiro – a sensibilidade, a sensualidade – da insensível e irreparável morte, a sua “divindade” tanto quanto a sua “feminilidade”, ou seja, para retomar ainda essa palavra, a sua “santidade”.

Mas a santidade, deve-se ainda a ver ou cheirar, deve-se ainda tocar. Os anjos no túmulo, Maria Madalena é aqui a única a tê-los visto. Os discípulos que a haviam precedido tinham olhos que não viam nada nessa obscuridade. Ela, por seu turno, ela vê. Ela não dissipa a noite do túmulo: ela vê a presença desses que guardam a ausência, e que a mantêm ausente. Tendo sabido ver no túmulo como ela soube já uma vez ver morto, para o perfumar, o corpo daquele que vivia ainda, ela sabe no presente escutar a voz que a chama pelo seu nome. Ele vê a vida na morte porque ela viu a morte na vida. Não que uma seja a verdade da outra, mas ao contrário a verdade espaçando as duas não se deixa reduzir nem a uma, nem à outra. A verdade não se deixa reduzir, por absoluto. Ela não se deixa nem tocar, nem reter. Não se trata de ver na13 treva, e portanto malgrado ela (recurso dialéctico, recurso religioso): trata-se de abrir os olhos na treva14 e que eles sejam invadidos por ela, ou bem se trata de sentir o insensível e por ele ser tomado.

Se Maria Madalena é uma tal personagem, tão singular entre as personagens dos Evangelhos, e por essa razão também tantas vezes pintada penitente ou arrependida, rezando no deserto perto de um crânio, e quase sempre de cabelos desfeitos e sem véu – signo da sua vida galante tanto quanto do seu gesto sobre os pés de Jesus, assinalando esse gesto estranho de graça e de volúpia –, não é por outra razão senão esta: ela articula o carinho e a homenagem como a vida e a morte, como a mulher e o homem, como a ligeireza e a gravidade, como o aqui e o algures, sem passar de um ao outro mas partilhando-os sem os misturar, um contra o outro, por um tocar que se espaça e se interdita a si mesmo. Ela torna-se de alguma forma a santa por excelência porque ela se dá a esse ponto em que o toque do sentido é idêntico ao seu retraimento. É o ponto de abandono: ela abandona-se a uma presença que nada é senão uma partida, a uma glória que é senão treva, a um cheiro que é senão fragrância. O seu abandono procede tanto do amor quanto do abatimento, sem que um releve o outro, mas a simultaneidade dos dois faz o levantamento desse mesmo momento – um levantamento que acaba na ascensão.


1 Sobre o nascimento da tradição que fez dela a primeira testemunha da ressurreição, e quem talvez a identificou com o papel de mãe de Jesus, ver, sob a direcção de François Bovon e Pierre Geoltrain, Écrits apocryphes des chrétiens, vol. I, Paris, Gallimard, 1997, as notas em 8, 2 e 11, 1-3 do Livre de la réssurrection de Barthélemy e em VIII, 2 das Actes de Philippe.
2 Outra violência da interpretação: um uso frequente quer que se assimile na mesma Maria de Magdala personagens talvez diferentes no interior dos textos. Faz-se assim mais marcante e complexa a figura da mulher a quem é endereçada o «noli». A sua história singular torna-se uma parábola entrançada ao longo de toda a história crística. A discussão sobre as identidades das diversas Maria (fora a mãe de Jesus) está bastante documentada na literatura exegética. Cf. uma obra recente: Pierre-Emmanuel Dauzat, L'invention de Marie-Madeleine, Paris, Bayard, 2001. Muito evidentemente, nem faço aqui a minha exegese pessoal: extrapolo livremente.
3 Ver acima nota 18, p. 9.
4 O texto precisa portanto “aquele que o iria entregar” (12, 4); o episódio com efeito situa-se pouco antes da Páscoa.
5 12, 7. Segundo o apócrifo Vida de Jesus em Árabe (7, 1-2), esse copo de perfume continha o prepúcio circuncidado de Jesus (ver o texto em Écrits apocryphes des chrétiens, op.cit., nota 44).
6 Em Lc 10, 38-42.
7 O hábito de fazer dela uma prostituta é apoiada por um lado sobre Mc 16, 9: “Ressuscitado na aurora do primeiro dia da semana, ele apareceu primeiro a Maria Madalena, a quem ele tinha escorraçado sete demónios” (cf. Lc 8, 2), por outro lado e antes de tudo sobre Lc 7, 36-49 onde figura um episódio de perfume vertido sobre os pés de Jesus por uma “pecadora”. A confusão das Maria engloba igualmente uma mulher não nomeada... E é a Maria Madalena caso exemplar dessa elaboração da lenda através dos textos eles próprios heterogéneos de diversos evangelhos quem será representada penitente no deserto de Egipto, vinda a se estabelecer e a morrer na Provence, etc. Como se sabe, o motivo de Madalena no deserto proliferou na pintura, portador do oxímoro da carne pecadora e da fé fervente. Muitas vezes os pintores colocam um crânio perto da penitente no deserto enquanto ao mesmo tempo a desnudam até à metade sob a sua cabeleira (Ticiano é exemplar na matéria com a sua Madalena de Florença na qual os olhos se viram para o céu enquanto a sua imensa cabeleira se espaça sobre os seus seios). A carne, a morte, o amor compondo o ser-neste-mundo-fora-do-mundo, eis a cifra de Maria de Madalena. É igualmente uma das cifras dos evangelhos nos quais as prostitutas são com os pobres, e segundo uma tradição debutada no Antigo Testamento, os mais próximos do “reino de Deus”.
8 Esse mesmo vaso pode também representar à vez aquele com que Nicodemo trouxe as especiarias para o túmulo na cena precedente (Jn 19, 39) e aquele que serve de emblema a Maria Madalena.
9 Magnasco coloca também uma mão da mulher perto de um pé de Jesus, e não longe do vaso. Mas a alusão é menos nítida uma vez que o pé assenta na terra. Esse do anjo, em Rembrandt, não tem pelo contrário qualquer razão visível de aí se encontrar, e a sua presença pode mesmo ser julgada um pouco forçada.
10 Esta expressão nascida muito mais tarde traduzia a crença segundo a qual o cadáver de um santo não libertava o odor da putrefacção, mas ao contrário um odor agradável. Cf. J.-P. Albert, Odeurs de sainteté, la mythologie chrétienne des aromates, Paris, EHESS, 1990.
11 A Gaia Ciência, § 125. Seguimos a edição portuguesa da Guimarães Editora, 2000, trad. de Alfredo Margarido.
12 Em itálico no original.
13 Em itálico no original.
14 Em itálico no original.

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