Maria de Magdala –
de quem fizemos «Maria Madalena» –tem todas as razões para ser a
primeira a quem o ressuscitado se mostra, ainda que para lhe escapar
imediatamente, e todas as razões também para ser aquela que ele
encarregou de ir anunciar o que ela viu, ou o que crê ter visto.1
De duas maneiras a
história de Maria de Magdala segundo a vida de Jesus anuncia o
encontro frente ao túmulo aberto.2
Por um lado, ela é a irmã de Lázaro e é ela quem se precipitou
para Jesus para que traga o seu irmão à vida. Já então ela
mostrou que confiança punha no seu Senhor: não a crença com a qual
alguns consideram os supostos taumaturgos, mas a segurança disso,
que o morto pode ainda erguer-se e caminhar, que na verdade ele não
deixa de fazer, como fazem todos os mortos pois todos caminham com os
vivos. Os mortos estão mortos, mas enquanto mortos eles não deixam
de nos acompanhar, e nós não deixamos de partir com eles. Partir
para lado nenhum: partir, absolutamente, ir ao fundo do túmulo até
ao fundo sem fundo de onde não se deixa de avançar sem que por isso
se faça caminho a qualquer destino.
Caída aos pés de
Jesus, Maria disse-lhe: “Senhor, se tu houvesses estado aqui, o meu
irmão não estaria morto”. Ela faz eco dessa maneira, sem o saber,
com a frase que Jesus disse um pouco antes à sua irmã Marta: “Eu
sou a ressurreição”.3
Na sua presença, a morte não se pode restringir à cessação da
vida: ela torna-se na vida mesma na iminência interrompida da
ausência.
Mais tarde, Jesus
retornou a Betânia e jantou com os seus discípulos, Marta, Lázaro
e Maria. Esta tinha consigo um perfume precioso para untar os pés de
Jesus, antes de os secar com a sua cabeleira. Um dos discípulos,
Judas,4
culpou-a por ter desperdiçado esse perfume no lugar de o dar aos
pobres. Jesus respondeu: “Deixa-a guardar isso para o dia do meu
sepultamento”.5
Maria Madalena está desde então na proximidade da morte em geral,
como também a de Jesus. Ela que, num outro episódio também ele bem
conhecido, tinha «escolhido a parte boa»6
permanecendo sentada junto do mestre no lugar de se activar como sua
irmã Marta às tarefas domésticas, ela é aquela que sempre
distingue, compreende e escolhe a parte que não é deste mundo. Que
ela seja depois disso considerada como uma mulher de má vida7
responde a este paradoxo: a “boa vida” não é aquela que se
conforma com os bons modos (pode-se também pensar na mulher
adúltera, no filho pródigo, etc.) mas aquela que nesta própria
vida e neste mundo fica igualmente na proximidade daquilo que não é
deste mundo: desse fora (dehors)
do mundo que é o vazio do túmulo e o vazio de deus, o vazio aberto
em deus ou melhor como o próprio “Deus” no dar à luz ao mundo
do homem, no dar à luz ao mundo do mundo.
Maria Madalena é
aquela que mais ostensivamente tocou Jesus, untando-o de perfume –
unção que responde ao título de “cristo” (ungido, messias)
mas fá-lo nesse modo em suma invertido (paródico? crítico?
desconstructor?) em que o óleo santo é trocado por um perfume
sensual e em que a unção se faz sobre os pés e não sobre a
cabeça. Unção verdadeira, pois, unção que previamente terá
embalsamado o corpo de Jesus, antecipando a sua morte e a sua
ressurreição, antecipando o seu corpo glorioso em conferindo-lhe ao
longo da sua vida a glória insensata (insensée)
de ser perfumado por uma mulher galante.
(Rembrandt)
Rembrandt,
ainda ele, é talvez o único dos pintores, senão a ter-se lembrado
do episódio do perfume, pelo menos a ter sabido relembrá-lo na cena
do túmulo. Pois que entre de quaisquer outros pintores do Noli...
Maria Madalena está acompanhada do vaso do perfume, que é também
um dos seus emblemas canónicos nos quadros em que está só
(Madalena
penitente,
etc.), como em Raggi, Juan de Flandres ou Fontana Lavínia, e se esse
vaso está igualmente presente em Rembrandt,8
ao invés esse último é o único a evocar o caso do perfume
colocando perto da mão esquerda da mulher a perna e o pé estendidos
de um dos anjos, como disposto para ser lavado e secado.9
Por causa da pose do anjo e da substituição deste último por
Jesus, a alusão não está longe de ter um carácter jocoso (joueur)
ou estar disposto como um piscar de olho. Mas ela não tem menos, ou
ela tem bem mais, um carácter particularmente elaborado: o pé que a
mão da mulher poderá tocar sai do túmulo, ou ainda mais marca o
limiar. A mão, o pé, o vaso e uma vez mais o corte de separação
entre sombra e luz (sobre a franja do túmulo) assemelham-se neste
ponto do quadro àquilo que relaciona a sua cena com a da unção:
“Não me toques pois tu já me tocaste e guardo para mim teu
perfume, tanto como ele me mantém na morte, tanto como teu
embalsamento me mantém morto e mantém essa verdade insensata do
túmulo; não me toques, está feito, teu perfume precioso foi
espalhado, deixa-me partir e vai por teu lado anunciar que eu parto”.
(Ticiano)
Não
se deveria omitir relembrar, também, que as especiarias e os
perfumes, no contexto da sepultura, estão destinados a prevenir
aquilo que Dostoievski chamou de “o odor deletério” em Os
irmãos Karamazov.
Ora, foi dito de Lázaro que, ao quarto dia após a sua morte (um dia
a mais que Jesus...), “ele já cheirava”. Jesus, ele, não
cheirou. O perfume de Maria Madalena libertou previamente o seu “odor
de santidade”, que é um outro aspecto do corpo glorioso.10
O insensato de Nietzsche escreve-se: “Ainda não sentimos nada da
decomposição divina?... Os deuses também se decompõem! Deus
morreu! Deus continua morto!”.11
Deus permanece morto, sem qualquer dúvida – mas é precisamente
dessa putrefacção divina que se separa, no seu princípio e no seu
incessante movimento de auto-descontrucção, essa morte de Jesus que
não faz reviver Deus, não mais que qualquer homem: ela fala de uma
outra morte e de uma outra vida, de uma anastasis
ou de uma glória12
que formariam como o cheiro – a sensibilidade, a sensualidade –
da insensível e irreparável morte, a sua “divindade” tanto
quanto a sua “feminilidade”, ou seja, para retomar ainda essa
palavra, a sua “santidade”.
Mas
a santidade, deve-se ainda a ver ou cheirar, deve-se ainda tocar. Os
anjos no túmulo, Maria Madalena é aqui a única a tê-los visto. Os
discípulos que a haviam precedido tinham olhos que não viam nada
nessa obscuridade. Ela, por seu turno, ela vê. Ela não dissipa a
noite do túmulo: ela vê a presença desses que guardam a ausência,
e que a mantêm ausente. Tendo sabido ver no túmulo como ela soube
já uma vez ver morto, para o perfumar, o corpo daquele que vivia
ainda, ela sabe no presente escutar a voz que a chama pelo seu nome.
Ele vê a vida na morte porque ela viu a morte na vida. Não que uma
seja a verdade da outra, mas ao contrário a verdade espaçando as
duas não se deixa reduzir nem a uma, nem à outra. A verdade não se
deixa reduzir, por absoluto. Ela não se deixa nem tocar, nem reter.
Não se trata de ver na13
treva, e portanto malgrado ela (recurso dialéctico, recurso
religioso): trata-se de abrir
os olhos na treva14
e que eles sejam invadidos por ela, ou bem se trata de sentir o
insensível e por ele ser tomado.
Se Maria Madalena é
uma tal personagem, tão singular entre as personagens dos
Evangelhos, e por essa razão também tantas vezes pintada penitente
ou arrependida, rezando no deserto perto de um crânio, e quase
sempre de cabelos desfeitos e sem véu – signo da sua vida galante
tanto quanto do seu gesto sobre os pés de Jesus, assinalando esse
gesto estranho de graça e de volúpia –, não é por outra razão
senão esta: ela articula o carinho e a homenagem como a vida e a
morte, como a mulher e o homem, como a ligeireza e a gravidade, como
o aqui e o algures, sem passar de um ao outro mas partilhando-os sem
os misturar, um contra o outro, por um tocar que se espaça e se
interdita a si mesmo. Ela torna-se de alguma forma a santa por
excelência porque ela se dá a esse ponto em que o toque do sentido
é idêntico ao seu retraimento. É o ponto de abandono: ela
abandona-se a uma presença que nada é senão uma partida, a uma
glória que é senão treva, a um cheiro que é senão fragrância. O
seu abandono procede tanto do amor quanto do abatimento, sem que um
releve o outro, mas a simultaneidade dos dois faz o levantamento
desse mesmo momento – um levantamento que acaba na ascensão.
1
Sobre o nascimento da tradição que fez dela a primeira testemunha
da ressurreição, e quem talvez a identificou com o papel de mãe
de Jesus, ver, sob a direcção de François Bovon e Pierre
Geoltrain, Écrits apocryphes des chrétiens,
vol. I, Paris, Gallimard, 1997, as notas em 8, 2 e 11, 1-3 do Livre
de la réssurrection de Barthélemy
e em VIII, 2 das Actes de Philippe.
2
Outra violência da interpretação: um uso frequente quer que se
assimile na mesma Maria de Magdala personagens talvez diferentes no
interior dos textos. Faz-se assim mais marcante e complexa a figura
da mulher a quem é endereçada o «noli». A sua história
singular torna-se uma parábola entrançada ao longo de toda a
história crística. A discussão sobre as identidades das diversas
Maria (fora a mãe de Jesus) está bastante documentada na
literatura exegética. Cf.
uma obra recente: Pierre-Emmanuel Dauzat, L'invention de
Marie-Madeleine, Paris, Bayard,
2001. Muito evidentemente, nem faço aqui a minha exegese pessoal:
extrapolo livremente.
3
Ver acima nota 18, p. 9.
4
O texto precisa portanto “aquele que o iria entregar” (12, 4); o
episódio com efeito situa-se pouco antes da Páscoa.
5
12, 7. Segundo o apócrifo Vida de Jesus em Árabe
(7, 1-2), esse copo de perfume continha o prepúcio circuncidado de
Jesus (ver o texto em Écrits apocryphes des chrétiens,
op.cit., nota 44).
6
Em Lc 10, 38-42.
7
O hábito de fazer dela uma prostituta é apoiada por um lado sobre
Mc 16, 9: “Ressuscitado na aurora do primeiro dia da semana, ele
apareceu primeiro a Maria Madalena, a quem ele tinha escorraçado
sete demónios” (cf. Lc 8, 2), por outro lado e antes de
tudo sobre Lc 7, 36-49 onde figura um episódio de perfume vertido
sobre os pés de Jesus por uma “pecadora”. A confusão das Maria
engloba igualmente uma mulher não nomeada... E é a Maria
Madalena caso exemplar dessa elaboração da lenda através dos
textos eles próprios heterogéneos de diversos evangelhos quem será
representada penitente no deserto de Egipto, vinda a se estabelecer
e a morrer na Provence, etc. Como se sabe, o motivo de Madalena no
deserto proliferou na pintura, portador do oxímoro da carne
pecadora e da fé fervente. Muitas vezes os pintores colocam um
crânio perto da penitente no deserto enquanto ao mesmo tempo a
desnudam até à metade sob a sua cabeleira (Ticiano é exemplar na
matéria com a sua Madalena de Florença na qual os olhos se viram
para o céu enquanto a sua imensa cabeleira se espaça sobre os seus
seios). A carne, a morte, o amor compondo o
ser-neste-mundo-fora-do-mundo, eis a cifra de Maria de Madalena. É
igualmente uma das cifras dos evangelhos nos quais as prostitutas
são com os pobres, e segundo uma tradição debutada no Antigo
Testamento, os mais próximos do “reino de Deus”.
8
Esse mesmo vaso pode também representar à vez aquele com que
Nicodemo trouxe as especiarias para o túmulo na cena precedente (Jn
19, 39) e aquele que serve de emblema a Maria Madalena.
9
Magnasco coloca também uma mão da mulher perto de um pé de Jesus,
e não longe do vaso. Mas a alusão é menos nítida uma vez que o
pé assenta na terra. Esse do anjo, em Rembrandt, não tem pelo
contrário qualquer razão visível de aí se encontrar, e a sua
presença pode mesmo ser julgada um pouco forçada.
10
Esta expressão nascida muito mais tarde traduzia a crença segundo
a qual o cadáver de um santo não libertava o odor da putrefacção,
mas ao contrário um odor agradável. Cf.
J.-P. Albert, Odeurs de sainteté, la mythologie
chrétienne des aromates,
Paris, EHESS, 1990.
11
A Gaia Ciência, §
125. Seguimos a edição portuguesa da Guimarães Editora, 2000,
trad. de Alfredo Margarido.
12
Em itálico no original.
Sem comentários:
Enviar um comentário