quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Cartas de Hamburgo IV

a proibição tinha lugar pelo jardim
abriam-se porém adendas ao fechar dos olhos
mão enrodilhada na certeza e o tempo
afundando os arroios do rosto
aí espelhou-se o lamento rangente de árvores
um timbre harmonizado com o tambor do corpo

de entre a lama e erva azul de gelo pespontava
a brutalidade do amarelo e branco de narcisos
a nervosa segurança de coelhos e esquilos julgando
os teus passos o fungar o aroma do batôn
cerzidor da fenda do inverno nos lábios
moldados para o beijo o silêncio o chamamento

também outros animais te observam
e vigiam os gestos com medo e desagrado
são como tu mas não retribuis a interrogação
buscas a familiaridade e segues sereno de olhar
perdido em aterragens de patos nos esforços da galinhola preta
mergulhada nas águas desses falsos lagos de superfície vidrada

o mofante riso das cotovias e o saltitar dos destemidos
corvos alegram-te o passeio pelo parque
estes momentos são-te importantes dizem-te
ser este o caminho do desnudamento começando
por te livrares do peso do julgamento do outro
até que a trama da mão se alargue a todo o corpo

ao saíres és confrontado com a suja rudeza
do alcatrão cintilante de vidro e beatas cuspo e vómito
o patético fausto das luzes da dome as buzinas a vozearia
os encontrões e os ainda mais inquisidores olhares ensurdecedores
forçando-te a esquecer e desistir dos alvitres do amor e do futuro
ao longo das ruas de Sainkt Pauli até à montanha de Hamburgo

passas pela efémera ainda presa no seu instante
com ranho a escorrer numa pose de estátua de Gomorra
sobes os degraus de madeira e linóleo vibrando sob o peso da música
interminável e nessa casa de empréstimo aguardas a sua chegada
e do embate da rua o seu olhar e o mundo que és nasce uma resiliência
aderindo e cercando o nó enrodilhado da certeza na mão

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