terça-feira, 21 de junho de 2016

António Osório - passagem subterrânea



Admirável quem perante o relâmpago não diz: a vida foge.

Bashô


          Aqui tens,
cedo-te a minha alma.
          Não digas: a vida foi efémera.

          Tenta escrever em mim,
papiro aninhando em água
          suas raízes.

          Falarei por ti
de trezentos anos, menos de insecto
          rastejante, sob a terra.

          Entra, ouve,
aquece a tua esteira,
          produza cada palavra um deus.

          Escondamo-nos neste espantalho:
apossa-te do mendigo cego,
          do crânio desafiado pelos pássaros.

          Bom que não temam,
poisem sobre nós, saibam
          que vivemos entre fantasmas.

          O espantalho: máscara
de ambos, possessa
          de um, dois crucificados.

          E analfabetos da noite,
depauperados por ventos, névoas,
          a sombria irradiação lunar.

          Olha em redor:
vinhas por abelhas pungidas,
          deixemo-las saciar.

          E um caracol suba por nós dois,
percorrer-nos-ia a sua pele
          íntima, feminina.

          Agora utiliza esta passagem subterrânea
aqui em Paris sob o Arco do Triunfo
          onde desejei ouvisses um jovem cantando.

          No torso da viola,
colete de salvação, transporta a sua, a minha,
          a tua incomunicável melancolia.

          Traz a tua esteira
e ouve este jovem, longe dos canhões de Austerlitz
          a sua voz digna de teus versos.

          Ele não diz: o deus está ausente,
as folhas mortas amontoam-se
          e tudo está deserto.

          Canta ainda procurando
o impossível, a fenda luminosa.
          Sai e segue o seu caminho.


in Décima Aurora, parte: Outra face


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