Admirável quem perante o relâmpago não diz: a vida foge.
Bashô
Aqui tens,
cedo-te a minha alma.
Não digas: a vida foi efémera.
Tenta escrever em mim,
papiro aninhando em água
suas raízes.
Falarei por ti
de trezentos anos, menos de insecto
rastejante, sob a terra.
Entra, ouve,
aquece a tua esteira,
produza cada palavra um deus.
Escondamo-nos neste espantalho:
apossa-te do mendigo cego,
do crânio desafiado pelos pássaros.
Bom que não temam,
poisem sobre nós, saibam
que vivemos entre fantasmas.
O espantalho: máscara
de ambos, possessa
de um, dois crucificados.
E analfabetos da noite,
depauperados por ventos, névoas,
a sombria irradiação lunar.
Olha em redor:
vinhas por abelhas pungidas,
deixemo-las saciar.
E um caracol suba por nós dois,
percorrer-nos-ia a sua pele
íntima, feminina.
Agora utiliza esta passagem subterrânea
aqui em Paris sob o Arco do Triunfo
onde desejei ouvisses um jovem cantando.
No torso da viola,
colete de salvação, transporta a sua, a minha,
a tua incomunicável melancolia.
Traz a tua esteira
e ouve este jovem, longe dos canhões de Austerlitz
a sua voz digna de teus versos.
Ele não diz: o deus está ausente,
as folhas mortas amontoam-se
e tudo está deserto.
Canta ainda procurando
o impossível, a fenda luminosa.
Sai e segue o seu caminho.
in Décima Aurora, parte: Outra face
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