terça-feira, 22 de março de 2016

A escrita do amor por entre quartos e corredores III

se a linguagem é um dom sabes não ter nada a dizer
(escreve-se pelo silêncio e ao lado de todas as palavras)
mas como percorrer o labirinto do teu pensamento
avolumando-se sem que te percas para sempre entre letras
sons imagens palavras brotando imprevistamente
onde também tu habitas como signo de amor
revelando-me vias ou sendo o farol que me guia

o sentido é um fio de ariana a caminho e escuto
o fluxo na cadência do sangue correndo no cavername
de olhos iluminados busco o contorno ileso
do que se está a formar dentro de mim
e tantas vezes a porta aberta aos fantasmas
onde valsas entre eles tu a única mulher real

inseguro penso peso evoco emudeço
quando estás pequenas coisas duram a eternidade
por isso sustenho as lembranças
guardo-as para habitar a casa plena de tua ausência
cogito a decisão de reviver esta ou aquela cena
o dia corre lento como qualquer outro dia e tão (e)terno
passa por ti juntando-se a todas as horas
por fim sentas-te (vê onde pões os pés
há demasiada fragilidade no mundo e
na memória) escolhe-te inesperadamente
a da janela à qual retornas e onde os dois
se conheceram intimamente pela primeira vez
selando os rostos num beijo de lenta aproximação
intumescendo todos os teus lábios e o sangue
bombeou na jugular e em todos os meus canais

acontecimento de já outrora tentada inscrição na eternidade
e que poucos lerão mas retorno
aí inevitavelmente como sempre volto
ao teu corpo mal te apresentas num vaivém mareado
surtindo um efeito doppler nos sentimentos
em que todo eu na tua aproximação sinto
a voluptuosidade de uma atracção grave
quando nem ainda carne na carne
encontrando as suas covas depressões montes
restando uma mínima distância que se agudiza
nas tuas partidas aí se esboça a dissonância
do tempo do coração e suas variantes batidas

e é verão talvez fazendo frio por tudo
o que é interior
e de nenhures ouço um grilo
junta o seu corpo ao caos
eis a dádiva de um ritmo
acompanha na passada a infância
que vai cingindo-te um nervoso nó
e os dentes gravilham impacientes
(tens tempo não tens tempo)
enquanto sobe aos lábios a melopeia
de terras morenas e azinheiras
passo a passo (de um ao outro
promessas e gestos a con(tra)dizer
como ruminando falhas
ou o que foi dito mais do que fôra devido)

esta ruína move-se por entre corredores
e quartos arrastando os pés
enlodando-se em infatigáveis predações
Actéon viciado na vingança de Artémis
voltando não para mudar a memória
persistindo para o nosso riso e tristeza
mas para lentamente crendo ainda no tempo
pelas suas mãos e gestos levar a mulher
a amá-lo pela escrita digam-me que mais pode
fazer um homem na sua maturidade

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