sexta-feira, 5 de abril de 2013

Juan Rulfo



Título: Obra Reunida
Autor: Juan Rulfo
Editor: Cavalo de Ferro
Tradução: Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu

          O peso é uma realidade do corpo, senão mesmo a realidade ontoteológica por excelência de todo o ser. O corpo cai e com a sua queda é o mundo que com ele cai ou se queda. O seu peso é a perda da glória do corpo edénico. A queda, na verdade, não se tratou de uma absorção do conhecimento pela via da sedução, mas o despertar da gravidade de um corpo que outrora estava nuamente vestido de glória e se quedou vestido somente com o seu peso, tanto mais grave quanto surtindo um pensamento. O peso maior de um corpo nem é o da sua massa, bem mais esse intangível do pensamento, da memória, dos sonhos, das ilusões. Palavras e imagens que nos pesam com o peso do mundo, de todas as vidas que fazem corpo com o nosso.
          Sonhos, ilusões, mortos, como tudo isso arrasta um corpo pelo mundo, prendem-no mesmo a este mundo. Há zonas de tão áridas e secas que parecem deixar o corpo entregue a esse peso e quem melhor traduziu essa secura, aridez, o peso do pensamento desse mundo foi esse mestre da escola sul-americana do realismo fantástico, ou mágico, de seu nome Juan Rulfo (1917-1986). O que o deixou conhecido foi a sua breve “carreira” de escritor, pouco mais de trezentas páginas inclusas neste volume: “Pedro Páramo”, uma novela, “O Llano em Chamas”, volume de curtos contos e, “O Galo Dourado”, um conto/novela; a par de alguns argumentos para cinema e muitas fotografias. Uma curtíssima carreira, dada à luz maioritariamente nos anos cinquenta, a que Juan Rulfo depôs um silêncio até ao fim da sua vida. O suficiente para ser, conjuntamente com Jorge Luis Borges, a voz mais importante da América Latina e reconhecida como tal por todos – leia-se, por exemplo, o prefácio de Gabriel Garcia Márquez a quem tudo lhe deve.
          A sua obra é o retrato mais cru, seco, árido, conciso e preciso de um México desses conturbados anos revolucionários; e a grande revolução rulfiana decorre do facto de a sua escrita ter as característica que imprimiu no seu retrato. Porém, quanta poesia nesse deserto calcinado que são as suas páginas. Pouco interessa, aqui, fazer o relato dos argumentos e tramas das suas histórias: seria como uma única gota caída numa terra sequiosa, levantando uma bruma de poeira e rapidamente desaparecendo, água e pó. Caminhe-se antes esse deserto, ou que se o ponha na cabeça, nos lábios através dos olhos. Que se diga antes que este livro, esta obra reunida, vibra de vida e, todavia, está plena de mortos, como nessa necrópole de seu nome Comala, aparecendo e falando ao ouvido de Juan Preciado, ou os pesos mortos que se trazem às costas, que se arrastam pelas colinas pedregosas, que bebem junto dos vivos e brindam à memória dos que irão morrer, que se salvam de uma morte para encontrar, mais adiante, a morte. Sonhos, ilusões, memórias pesam no(s) corpo(s) destas páginas e nós carregamo-los no gesto tão leve do dedo que move a folha.
          Os egípcios e os tibetanos têm o seu Livro dos Mortos. Nós, ocidentais – que significa, ocidente, queda – deste século – parecendo tão mais em queda do que nunca, ou talvez seja somente outro mito, o da queda – temos a “Obra Reunida” de Juan Rulfo.

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