domingo, 4 de novembro de 2012

Pedro Eiras - O Aquário (monólogo)

É bom ter um aquário em casa
com uma lâmpada fluorescente para o que der e vier
um pequeno bunker artesanal
ou uma saudade da Criação

Ningu´m sabe muito bem quem vai comer o quê
ou degenerar em criatura de mil léguas submarinas
mas isto é certo:
o que quer que aconteça, serás sempre o primeiro a saber

Na verdade, lamento muito, nada acontece
senão a vida
podes esperar sentado na borda da cama imitação oriental
nu, estremunhado, pés mal assentes no chão
olhas as vidas dos peixes, a maravilhosa selecção natural
                                            das espécies que ordenaste
um vermelho um azul um amarelo salteados
abrindo as bocas sincronizadas à espera do camarão de lata
levantas-te e tamborilas na borda da lata para
o pão nosso de cada dia lhes dar hoje

É bom acordares com os olhos no espaço abissal do aquário
e por um ténue momento pensares
que talvez tu estejas num aquário e os peixes fora
que talvez, quando abrem a boca, comentem o verdete dos teus olhos
o tom bege da tua pele
talvez precises de comer mais camarão, opinam os peixes

sentes o ar espesso? Sentes
as algas de nuvens dos cigarros, a trepidação dos passeios como
                                             correntes fundas de outro oceano?
talvez sejas apenas um peixe, pequeno indefeso insignificante
                                opressivo disfarçado travestido anónimo
                                         obscuro vendido comprado peixe
à solta

Que bom ter peixes no quarto
eles decidem para qual das quatro paredes de vidro
                                                       hão-de ir agora
ou ainda
o chão de pedras e de fezes
ou mesmo
o tecto de ondas remexidas com oxigénio
são muitos os percursos possíveis entre o barco de plástico naufragado
                                                                  e o mergulhador sem corda
são muitas as caras dos outros peixes, bom dia como está senhor
                                             peixe vermelho, boa noite como vai
                                                                  senhor peixe amarelo,
até ao dia em que a tua inteligência de peixe anónimo acorda
                                                                    para o facto de
todos os peixe serem apenas todos os peixes
e a água do aquário um vício promíscuo

Mas repara melhor na tua vida
atá ao lavar os dentes, nota bem, tu começas pelos molares
                                  de baixo à esquerda por fora, segues
para os incisivos de cima por dentro, depois por fora, continuas
pelos caninos de baixo, etc.,
sempre pela mesma partitura e não dás conta
o mesmo caminho para o trabalho e não dás conta
o mesmo amor a prestações
o mesmo golo eternamente repetido do eterno clube de sempre
                                                                       e não dás conta

Assim te vê o trágico coro dos peixes
assim te comentam enquanto dormes
a baba que te escorre da boca
as mãos que tremem e de repente agarram o ar
as poluções nocturnas para ninguém
como se riem de ti
o mesmo riso sempre e não passa disso
eles riem e riem e tu dormes sem saber
o espectáculo que és, pão e circo,
o deus dos peixes
o bobo dos peixes

Que bom, que bom ter um aquário e às vezes o vidro a
                                                                 reflectir a luz
então podes acreditar que também estás no líquido
                                                                amniótico
também és um peixe
não é verdade?
todos somos peixes
somos peixes e orgulhosos
não é verdade?
Não precisas de te esquecer numa banheira, a gilete
                                                vermelha da coragem
para fazeres mergulho artístico pesca exótica
basta saíres à rua com os teus olhos periscópicos atentos
e junto de cada cara mergulhares como um poço
às vezes será a tua própria cara num espelho de elevador,
                      depois a porta abre, e tu reduzes-te ao que
                                                   menos existe no mundo
poço buraco sem fonte só a terra arranhada pelas mãos
e todos falam à tua volta

Os peixes não

Os peixes ficam calados pela eternidade fora
observam com sageza preferem não fazer comentários
não é verdade que pela boca morra o peixe só o homem morre
                                                                                pela boca
pela mão pelo pénis pela clavícula pelo coração pelo pâncreas
                                     pela unha e pela sobrancelha por todo
                                                            o lado morre o homem
de sede e bebedeira de fome e fastio em todas as partes encontra
a morte

Só os peixes morrem de velhice
e de morte natural, a tal que não existe
a não ser
para os peixes

Alguns, por excepção, morrem
de stress
mas só porque um dono de aquário, em excesso de zelo,
decide remover uma planta aquática que cresceu de mais, diz ele,
e é tanto o remoinho tanta a pressão das águas interrompidas
que no dia seguinte os peixes bóiam abandonados
como uma plantação que irrompeu à luz
resta colher esses frutos da morte que deitarás pesaroso na sanita
certificando-te de que nenhum resiste à centripetação do autoclismo
porque tu sabes que assim é
a lei da vida
também serás empurrado pela enxurrada de um autoclismo maior
também serás substituído no grande aquário e as lágrimas que alguém
                                                chore se perderão na água dos canos
por isso
ninguém chega a ver um peixe chorar, aonde iriam as lágrimas
de um peixe que chora?

Só tu
és um peixe que chora, olhas o aquário, a luz crua, as escamas
                                               holográficas, os detritos sem peso
as vegetações onde se escondem os peixes mais orgulhosos
os que nunca vês, que nunca viste, que nunca colherás
na safra da morte
os peixes que não dançam para ti os que preferem morrer
os que cortam as veias
os que selam as guelras
os que se levantam e te matam durante o sono.


in Pedro Eiras, Beladona e outros monólogos, Ilha do Pico, Companhia das Ilhas, col. azul cobalto, 2012: 27-31

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