terça-feira, 13 de novembro de 2012

Helder Moura Pereira - 5 poemas

Palavras quase inaudíveis por baixo
de um ritmo, pareciam palavras
quando encostaste o ouvido
ao pequeno pássaro. O pequeno pássaro
tem um coração que continua a bater
dentro do seu corpo depenado, quase
não nasceu e já está a morrer.

Está um homem de idade indefinida,
vestido de cor indefinida, nem alto nem baixo,
nem gordo nem magro, iluminado pelo verde
da cruz da farmácia, vê-me a pegar no pássaro
e quando eu me aproximo ainda se indefine
mais, tem medo, desata a fugir e eu grito-lhe,
homem indefinido, venha cá, não vê que é
apenas um pássaro que está a morrer?

Depois foste apanhar o comboio que pára
em Todas, tivesse sido outro o comboio
que apanhaste e tudo seria diferente.
A vida toda seria diferente. Seria
melhor, seria pior, seria diferente.

Olha-se para aquele corpo e não parece
que esteja preso por arames. O corpo
fará análises e exames. Valores normais, nada
de especial, não há razão para alrme. Mas, se
se olhar bem, ver-se-ão os arames
que o prendem. A quê? Prendem-no
ao amor, porra, ao amor, é preciso gritar?

Nem no sonho nem na vida se sabe
o fim, acordo-te antes que a dúvida
te faça retirar a mão de onde repousavas.
Ainda me atormentais, banais segredos
do reino animal, atormentar-me-eis sempre,
pelos vistos sempre, sempre, sempre.

*

Oscilante reflexo sobre a ponta
da tinta força palavras a serem parte
do papel, e quando os olhos vêem,
podendo escapar-lhes o mais
importante, reparam que elas saem
como se esses mesmos olhos
nunca tivessem lido nada.

Algumas vezes parecem atarantadas,
a quererem romper por entre tudo
o que esses mesmos olhos já leram.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
E no meio da terra molhada, quando
já ninguém estava à espera, alguém
pronunciou o teu nome letra a letra.

No fundo, a manipulação do costume,
como se esse nome quisesse dizer
alguma coisa para lá do mar de dúvidas
que foram enchendo a vida do seu dono.
As cordas foram-se desfazendo, são
agora fios, em breve serão linhas.
E quando forem linhas, ainda
que em nós persista a vontade de perceber,
não deixemos que se puam, agarremo-nos
a linhas como últimas tábuas seguras.

Um íman negativo, trazido pela nuvem
negra da primavera, instalou-se no osso
fecundo. E era ver como as árvores
não cresciam, os cães não ladravam,
os arrogantes baixavam a bola. Sentei-me
numa bancada sobre o rio, procurando
uma força que combatesse o íman,
mas consegui em vez disso somar
a vergonha de escrever à de dar a ler.

*

Onde morrem os pássaros? Onde morrem,
que os não vejo morrerem na proporção
em que nascem? São milhares, e no jardim
defronte da minha casa nem sequer há
muita vegetação. Onde morrem os pássaros?

Vieste no meio de um arbusto, ó esfinge, ó
estátua, tens um coração no meio
dessa pedra toda? Então entrega-te a este
coração, ele vem de tão longe que se esqueceu
do seu nome, bate depressa e devagar
como um vulgar coração, apressa-se
e anda lento, respira fundo e por vezes vai
por aí fora como um cavalo com o freio
nos dentes, só mesmo outro cavalo
com o freio nos dentes o poderia acompanhar.

Mas a importante questão dos pássaros,
cada vez mais persistente por causa
de mais um copo de vinho, põe-nos a olhar
para céu, para as nuvens que vão
passando, na tentativa de ver cemitérios
aéreos. Onde morrem os pássaros?

Srá que a terra os come, a água os leva?
Ah, não, desfazem-se no ar, ou são levados
pelas nuvens, as suas penas dão a cor
da chuva, tudo morre num pássaro
menos as asas, e aí vão elas, puxando
as nuvens pelos ares. Pássaros eternos,
voam pelo céu nos meus olhos de miragem?

Tu és real, estás aqui e tens ossos, pálpebras
e fogo próprio, tu és a fonte metafórica
da existência, o deus, a deusa, a doença
incurável, o mal da alma, tu representas tudo.
A palavra amor já me arranha a garganta
e se junta com a palavra adeus então
sai um som que não se põe em música.

*

Se te disserem que a amizade não tem corpo,
mentem, mentem com quantos dentes
têm na boca. Eu preciso tanto de te tocar.
Tocar-te com dedos mesmo e não só
com palavras, pôr a mão por cima
do teu ombro, mesmo correndo o risco
de me dares uma sapatada. Porque eu não sei
se esta minha amizade é correspondida.

E quando a poesia se vai tornando
mais poesia do que devia, interrompes
com uma palavra vulgar um sentido
que nunca mais se vai saber como seria.
Se te disserem que não há passagem,
que a amizade não é trampolim
para outra coisa, pede que se calem,
explica-lhes que tudo pode acontecer.

Pode acontecer eu morrer aqui hoje
e tu também, basta haver um, apenas um
que tenha feito qualquer coisa
e essa coisa logo é possível. Isto alimenta
o meu desejo de que entre nós
as coisas talvez ainda possam compor-se.

Joguemos os dados. Oiçamos os dados
antes de tombarem para os números.
Se a vida nos tivesse saído assim, num jogo
de dados, dá-me a sensação de que
era capaz de não ser lá muito diferente.

Os dedos, foram os dedos que me interessaram,
os dedos que lançavam os dados. Eram
uns dedos magros e esguios, ligeiramente
escuros, uns dedos secos, com pequenas sardas.
Os dedos pareciam não vir de um corpo,
vinham só de dentro de umas mangas, e não
havia cabeça, havia apenas um buraco.
Eu não tirava os olhos desses dedos.

Ficaste a olhar para aqueles dedos
até te babares, apetecia-te deixar cair
o cabelo sobre a testa e brincar outra vez
aos novos e aos velhos, emborcar
três copos de seguida e agarrar depois
brevemente aqueles dedos ágeis.

*

Sou um homem, com os olhos fechados,
cambaleando frente a um ecrã, perdeste,
homem sentado, a relação da caneta
com o papel? Já nada pode voltar atrás -
é preciso que nos adaptemos à vida
presente, a mim deu-me muito trabalho
adaptar-me à vida passada, olho,
por exemplo, para a lista dos amigos
perdidos e sinto uma nostalgia e um vazio
que nenhum amigo futuro poderá preencher.

E desses um amigo particular (na verdadeira
acepção da palavra) pôde ver-me
inteiramente como eu era, talvez
tenha sido por isso que foi um dos que perdi.
Tenho a certeza de que sou visto
por este ecrã, há dois olhos, pelo menos,
que me vêem do outro lado, e se for uma multidão
pode cegar, como todas as multidões.

Em dois olhos ao menos haveria
esperança, nem que fosse a mesma
de repetir tudo outra vez ao pormenor.
Quando entro na pequena loja
de hortaliças do meu bairro e me dizem
muito bom dia com sinceridade, podem
chamar-me tudo o que quiserem,
mas a verdade é que me dá gosto viver.

E se esses dois olhos fossem os teus,
então, ah que alegria recomeçarmos tudo
desde o princípio. Digo isto porque
a nossa inteligência é escassa, vista assim
com objectividade na tal história que vem
sempre duas vezes. Tudo tem um princípio,
um meio, um fim, mesma a história
que por trás desta desenhou mentiras.


in Helder Moura Pereira, Segredos do reino animal, Lisboa, Assírio & Alvim, col. poesia inédita portuguesa,  2007: 37-38, 53-54, 75-76, 93-94 e 97-98.

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