quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Mário T. Cabral - 4 poemas

TRATADO DO mAL NATURAL

Debaixo da saia dos arbustos esconde o jardineiro as podas dos arbustos
Casado com a terra confiando à terra o que da terra faz parte
Assim mesmo ajoelhado como que ora, ora, oração justa na hora ajustada
Horaacção contempladora contempladora do Bem e do mal. «Peni'El, Peni'El»
Leve sussurra sorrindo em leveza - mas ninguém o ouve, nem ele próprio
Naquele lugar pensar é vício e a ligeireza desta lembrança suave vai na suave aragem.
Ali mesmo também aconchega as ervas consideradas daninhas no jardim
Com as mãos geladas agasalha a raiz do arbusto que há-de frutificar
Por cima da aparente contradição das estações do ano que roda e não roda por rodar.
Quanto tempo, ó jardineiro, levaste para atingir esta posição da liberdade escondida?
Com tudo ele deixou de ouvir as perguntas na sabedoria de executar respostas caseiras.
De cima o contemplo sem contemplar e assim me apanha mesma na face trazido o
Personificado pea aragem «Peni'El, Peni'El» pro-vocador. E eu? E eu?, insisto.
Por gestos parece-me que o Anjo me avisa da direcção que errada escolhi, eu
Eu que sinto frio nos terraços ao meio do azul imortal, mas eu que vejo
A morte e horizontes bem delimitados, eu que parado só pergunto, eu
Eu que digo Eu, se bem que tenha escrúpulos em arredondar um jardim.
Galos passeiam pelos muros à sombra de hibiscos amarelos
Cães impacientes o chamam a conduzi-los ao passeio na falésia
Ninguém diria que ontem por aqui passou um furacão.
E ao olhar para os bichos compreendo qu enão compreendi o Anjo
Dado que o rosto do jardineiro que nostálgico olha paa cima
É o meu que melacólico olha para baixo.

*

TRATADO DE pINTURA E FEITIÇARIA

Ao meio-dia toda a Terra cultivada presta e presta culto sobre a mesa da cozinha
É Sábado, seja qual for o dia, pois o préstimo é para a festa da presentificação.
A criada dá-se bem com a matéria, essências para ela são perfumes, espécies especiarias
Feiticeira, ela que não sabe ler nem escrever ou ver as horas, aqui reina, fada do lar
Aqui cintila, faz tilintar a vida silenciosa discretamente, sem dar por nada.
Se reina governa que é governo serrar o peixe do grande mar, lagostas, mariscos
Os frutos das cavidades todas; as aves esplendorosas que já voaram e cantaram
São agora sacrifício a um canto da mesa abaixo, as pregas da toalha, saliências
Protuberâncias da matéria abundam e reflectem reflectidos pormenores
Por menores, géneros luminosos, coloridos, mais ou menos vivos e límpidos.
A robustez antiga dela aniquila o tempo no inclinar da cabeça na mesma altura
Outra altura (mais baixa) do poeta que vai entrando e ouve a obrigação de ver meer.
«Vai um Porto?» O avental não é azul, a cor do terraço dele, acordado, ancorado
Pela mesma inclinação das mãos e da face que eterniza, bodas de Canãa.
O copo é um luxo Graal, cálice, cálix, cachos, caça cores e as caldeia.
Galos passeiam pelos muros à sombra de hibiscos amarelos
Amarelos são também os cirtrinos em declinações linguísticas, amar elos
Aos quais se juntam ovos cozidos já esmagados para o recheio das carnes
O púrpura vem das maçãs ao lado das castanhas, das uvas, dos figos, incoerências
Século tecnológico que junta o ano todo num só dia - não se vê o lado místico?
Eis se não quando a romã cai da mesa e se parte debaixo dela, como foi isto possível?
Como foi isto possível? O poeta se abaixa, aterrado; «Senhor!», ela censura
Ao que ele sem perceber responde: »Também os cachorrinhos comem as migalhas».

*

TRATADO DO tRÂNSITO OBRIGATÓRIO

Possuído o jardineiro inculto toma posse da cozinheira tola furor fulgor
É o jardim exterior a conquistar a cozinha interior furor fulgor
Mas é nela que reside o forno ardente, morte e ressurreição.
A curva do corpo yang perfeitamente ajustada à curva do corpo yin
Sim do côncavo ao convexo, convés ou conversão, é o mesmo
Onda a onda, marmoto - morto, não, que é o mar da reprodução
Embora morra o dois pelo três, que é já um, de novo, só, na cama do casal
O monge a ser gerado a sós no leito em brasa, fora do tempo como que levita
Leve, evita o Eu rotundo, em rotunda não é permitido estacionar
O monge solitário em transe, farto das horas mascaradas e folgazonas
Zonas de passagem cada minuto, cada segundo, está escrito já, nas Confissões
Apóstolo, tal e qual, o que já foi tolo, isto é, partido, agora Parsifal:
«Sou avisado, suavizado, sim, pelo Anjo, o grito de Paulo
Paulatinamente soletrado: 'Ma-ran-atha! Ma-ran-atha!'.
Vem, Senhor Jesus, vem ó Corpo Místico, Amor verdadeiro!
Quando no leito Vos recordo, porque Vos tornaste o meu refúgio
A minha alma tem sede da sede do Si. Afasta de mim este corpo!»
A esta hora vinha em trânsito do terraço tenebroso para a casa ensombrada
O poeta pára e escuta . De onde veio a voz do Anjo?De dentro? De fora?
Dos hibiscos amarelos? Amar elos? Os galos não param de cantar.
Entro? Saio? Estou a chegar? Estou a partir? Onde deixei o relógio?
Torna para a cama, ambulância do assombro, e reza por um lugar estanque
Mas nesta casa todos os quartos já foram todas as funções e dormiram todos
E o único versículo que recorda é »Mas o Homem não tem onde reclinar a cabeça».

*

TRATADO AUREOlar

Melro preto cantas, ninguém te ouve, é triste ou alegre teu trinar?
Saudoso pranto pela noite? Solene amanhecer? Preto negro pranto
De tão negro este preto já é azul em teu prantar pranteado aureolar.
Devagar, mui devagar, devagar e mais devagarinho, tal e qual o teu trinar
Levanta seu véu a noite - ou és tu? - ou são os galos? Ora de quem esta hora?
Do lado dos galos à sombra dos hibiscos amarelos, deles Inimigo?
De quem é esta hora que não é hora nenhuma? Grande perigo!
Homens todos dormem, século que tarda em acordar, grande perigo!
E é apenas e só a Terra a rodar... Tudo começa, dir-se-ia que termina.
Mas escuta, melro preto, pára teu pranto trinar - galos também pshssuuu!
Outra voz de quem esta se o humano está a dormir? Será sonho? E o que canta?
Alma livre a vaguear? Anjo que paira indeciso em hora que abre e fecha:
«Muitos dizem: "Quem nos fará felizes?" Em paz me deito e adormeço tranquilo»
Hora de Aurora, áurea hora, áureo lar: ora de quê esta hora? Hora de orar raro.
Azul, aul já e ainda não, azul, azul, luza, lusa promessa de morada demorada
Gravada a tua melodia em seu inocente sonhar, melro preto, preto melro
Há-de cantar sem saber saboreando o agridoce de teu Trino trinar.
Espécie de fada o fadas para o fado de multiplicar, há-de
Hão-de abrir-se as portadas para os lados do mar
Hão-de as paredes brilhar e recuar, os muros reluzir, asas para levitar
Hão-de as raízes das árvores levantar as tábuas do chão
Hão-de as unhas devagar, devagar, devagarinho, ir ao encontro das raízes
Há-de o sangue voltar a ser água em cântaros de casamento
Magnólias hão-de brotar pelas janelas, buganvílias e rosas.


in Mário T.Cabral, tratados, Ilha do Pico, Companhia das Ilhas, col. transeatlântico, 2012: 13, 16, 31 e 37.

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