quarta-feira, 10 de outubro de 2012

António Cabrita - 5 poemas

5           (leitura dos salmos)

«Tem um belo pescoço,
a minha gazela!»,
tudo o que lhe digo antes
de me aplicar o perdão.

Dia para dia se esfiapa
uma luz no rosto,
asa dessangrada
que te perfura o nome.

Mas inquietar-nos é vão -
a tua pele no sopro
da minha sede
repele o trovão.
O Tempo é o incapaz
de si mesmo e foge,
mas nós, meu amor:
uma maciez que denigre

quem a não tem. «O belo
pescoço da minha gazela!»
E o perfume caribenho
da lua unge David.

*

13

Fechas os olhos:   quantas vagas rebentarão
na praia até a dúvida s'apoderar do que ouves?

Um tentáculo de espuma. Dá a volta à cabeça.
Atrás de ti um pinhal, goteja no miolo escuro

onde agora o mar tem assento. Observa-te.
Fechados os olhos, a lua perde o cheiro.

*

7

de carne seria aquém
                      o teu e meu
deslumbramento.

*

8

Neste nosso corpo suado
por defenestradas carícias

não há réstia de estorvo.

É ptolemaico
o nosso sistema.

*

18

Que te digo eu? As marés vivas
não trouxeram o sal, excreção visível,
ao chão da infância e o mistério
das pegadas que desencaixaram
o meu corpo permanece indemne.

Ao rapaz da cicatriz no rosto
não sobram dúvidas: os cabos
que amarram as imagens ao batel
são mais frágeis que os palpos
das palavras. Mas a mim
falta-me consistência, uma cicatriz -
e limpo mesmo onde não se vê.

Que te digo eu? Que nenhuns assados,
brita ou furtiva gonorreia, me ensur-
deceu o som das árvores, a prensa
das cigarras quando o céu ameaçava
ficar líquido. Bocejo sobre
Bocejo limitada, a infância

que me coube. Se até às raparigas
poupei o sangue nos braços,
depois de lhes cravar o pus
dos dentes, e aliviei de agoirar
com os meus olhos de boi
a mija atrás das moitas.

Qu te digo eu? Que em miúdo
fugia dos combates, da loquacidade
do furão, e só o desempenho
da primeira letra me trouxe o coice:
quem roubou as vogais ao Nome?

E desde então o mistério das línguas
escondidas no algeroz impõe,
permeia uma brisa álgida entre
a letra e o papel, uma farpa que a ti
poupa mas me obriga às varas de salto.


in António Cabrita, Os Abysmos da Mão, Almada, Íman Edições, 2001: 36, 45, 57, 71 e 78-79.

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