terça-feira, 11 de setembro de 2012

Hans Magnus Enzensberger - M.A.B (1814-1876)




O que eu queria, exclamou, era manter intacto até ao fim
dos meus dias o sentimento da revolta, que para mim é sagrado! - 
Charlatão, casmurro, malfadado cossaco! - É o amor
do fantástico, um defeito maior da minha natureza. - Maomé
sem Corão! A tranquilidade faz-me desesperar. - Um ilusionista,
um papa, um ignoramus! - Coração e cabeça são de fogo.

Pois é Bakunine, deve ter sido assim. Um constante nomadismo,

desvairado e esquecido de si. Eras insuportável, insensato, impossível!
Cá por mim, Bakunine, podes voltar, ou ficar onde estás.

Uma figura alta de fraque azul nas barricadas de Dresden,
com uma cara que era a expressão acabada da mais crua raiva. Fogo
sobre a ópera! E quando tudo estava perdido, exigia, de pistola
na mão, do governo revolucionário provisório
que se fizesse ir pelos ares - e a ele também. (Estranho sangue-frio.)
Os cavalheiros recusaram a proposta por larga maioria .

Lembras-te, Bakunine? Sempre a mesma coisa. Claro que incomodaste.
Não admira! E incomodas ainda hoje. Estás a perceber? Tu incomodas,
é tudo. Por isso te peço, Bakunine: volta!

Interrogado, agrilhoado à parede nas casamatas de Olmütz,
condenado à morte, levado para a Rússia, indulto: prisão perpétua,
pessoa altamente perigosa! Um apoiante manda colocar-lhe
na cela um piano de cauda Lichtenthal. Os dentes caem-lhe.
Inventa, para a sua ópera Prometeu, uma melodia doce, lamentosa,
a cujo compasso, infantilmente, ia abanando a cabeça de leão.

Ah, Bakunine, és mesmo tu! (Abanando a cabeça de leão:

como vinte anos mais tarde, em Locarno.) E como és mesmo tu,
e já que, afinal, não podes resolver os nossos problemas, fica onde estás.

Deportado para a Sibéria, fugindo ao longo do rio Amur, azul gelado,
pelo Pacífico, em barcos a vapor, de trenó, a cavalo,
em comboios expressos, através da América deserta, seis meses
sem parar, para finalmente, em Paddington, pouco antes do ano novo,
saindo a correr do hansom, subir a escada, cair nos braços de Herzen
e gritar: Onde é que se arranjam aqui ostras frescas?

Numa palavra: porque és um zero, Bakunine, porque não prestas

para cromo de colecção para salvador para burocrata para padre da igreja
para polícia da esquerda ou da direita, Bakunine, volta, volta!

De regresso ao exílio. Não só o retumbar do motim, o barulho dos clubes,
o tumulto nas praças, mas também a agitação da véspera,
também os pactos, os códigos secretos, as senhas o faziam feliz.
Grandioso vadio, perseguido e esbanjador! Dia e noite
insultava e gritava, animava e tomava decisões.

Não é? E porque a tua actividade, a tua ociosidade, o teu apetite,

os teus eternos suores têm tão pouco de medida humana
como tu próprio, por isso, Bakunine, aconselho-te a ficares onde estás.

O seu biográfo, omnisciente, diz: Era impotente. Mas Tatiana,
a pequena irmã proibida, tocando harpa na mansão branca,
punha-o em delírio. É certo que os três filhos não são dele.
Mas escrevia a Nečaev, o mitómano, assassino, jesuíta, chantagista
e mártir da revolução: Meu pequeno tigre, meu boy,
meu querido selvagem! (O despotismo dos iluminados é o pior de todos.)

Mas deixemos o amor de lado, Bakunine. Morrer é que tu não querias.

Não foste nenhum desses anjos da morte da economia política. Andavas confuso
como nós, e eras sincero. Volta Bakunine!, Bakunine, volta.

Finalmente, a noite em Bolonha. Era no mês de Agosto. Ele estava à janela.

Escutou. Não se ouvia nada na cidade. Os relógios das torres deram as horas.
A insurreição tinha fracassado. Veio o dia. Escondeu-se
num carro de feno. De barba cortada, hábito de padre,
um cestinho de ovos no braço, óculos verdes, coxeando, de bengala,
até à estação, para ir morrer à Suíça, na cama.

Isto já foi há muito tempo. Na altura, como sempre, era cedo de mais,

ou demasiado tarde. Nada te contradisse, nada provaste:
por isso, fica, fica onde estás. Mas por mim, podes voltar.

Enorme massa de carne e gosdura, hidropisia, problemas de bexiga.

Ri estrondosamente, fuma sem parar, tosse, acossado pela asma,
lê telegramas em código e escreve com tinta simpática:
Exploração e governo: uma e a mesma coisa. Está inchado e sem dentes.
Tudo cheio de cinza de tabaco, colheres de chá, jornais. Diante da casa,
a dança dos espiões. Por toda a parte confusão e sujidade. O tempo passa.

A Europa continua a cheirar a polícia. Por isso, e porque nunca e em lugar

nenhum, Bakunine, houve, há ou haverá um monumento a Bakunine,
peço-te, Bakunine: volta, volta, volta.



in Hans Magnus Enzensberger, Mausoléu, Lisboa, Cotovia, col. Poesia, trad. João Barrento, 2004: 193-197.

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