domingo, 10 de junho de 2012

Manuel de Freitas - 5 poemas

GAME OVER

O corpo.
Uma duração precisa,
que se despede informalmente
nos beijos que já não dá.
Ó meu bom Jesus de Braga,
eu não saberia como ficar,
remendando os dias
com o apressado amor das coisas.

Tudo finalmente finda.
Na calamidade das mãos,
um cigarro que arde impróprio
sobre as manhãs exaustas.
E ninguém me quis,
pelo menos.

De que vos falarei,
com palavras póstumas
onde o rancor se apaga?
Era uma vez


aquele jogo triste que não sei jogar.

*

DEPOIS DO FIM

 Depois do fim, acumulam-se
os estilhaços e visitam-se
as moradas do costume.
Acendem-se cigarros, em jeito
de desporto, e talvez tudo
isto seja ainda a morte.

Não se contam estórias,
improváveis estórias, sobre
a noite que saqueia os corpos,
restituindo-os à memória
do nada. Empilham-se os dias,
com um terror leve e brando,
com a certeza de que não
voltarão, paciência.

A voz de ninguém há-de atenuar
esse grito - gestos de fuga
e riso que por descuido apenas
deixamos que existam. Encostados
nulos à parede dos minutos,
à espera de quem prometeu não vir
(com que rosto inábil, venha o diabo
e diga). Não vale a pena o esforço,
a inspiração da mágoa sob
os pulmões desatentos:

depois do fim é ainda o princípio

*

HAIKU DO BECO SÃO MIGUEL

As palavras são para as ocasiões,
o luto é quotidiano.

Não passou por aqui o amor.

*

EMPTY BED BLUES (1928)

"Partira"
João Miguel Fernandes Jorge

Partira. Como tudo parte.
Seria o feroz acaso de um corpo
ou apenas a denegada solidão
que julgamos descobrir, em perda?

De qualquer modo partira.
E toda a sua existência
consistiria doravante num maço
vazio sobre a mesa
e num copo de whisky intacto.

O bastante para permitir
que não tivesse sido mentira
a surda promessa das mãos,
uma guerra entre lençóis
de que resulta, no melhor dos casos,
a paz inútil da perda.

*

BLUE LESTER (1944)

É sempre o mesmo,
as revisitações do mesmo
espalhando pela casa
o seu perfume intolerável.
Uma voz de ninguém ao fundo
das esquinas e das gavetas abruptas
onde os papéis são apenas
a tristeza de serem papéis.

Testemunhos de outra coisa
que seria por exemplo Deus, não
seguramente Deus, antes
a recente memória de um corpo
ou a voraz certeza da morte.
Isso, por exemplo isso, embora
as palavras humedeçam
na ponta fria da navalha
onde nada ficou escrito ainda.

Finges acreditar num saxofone,
por alguns minutos, e nada te espera
agora a não ser o nada
que as mãos do vento sacodem.


in Manuel de Freitas, Game Over, Lisboa, &etc, 2002: 11, 32, 36, 70 e 71.

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