domingo, 4 de março de 2012

Pia Tafdrup - 5 poemas

DÁ-ME CHUVA

Dá-me chuva
como mãos vivas
ou passa-me
o instante
na ponta de uma faca
eu fico aberta.

*

VISTO

Fui visto no frio da manhã
por uma lebre
antes que ela fugisse sobre o gelo
do lago do bosque
desapareceu entre os caniços secos que abanavam
para me tocar com um silêncio
 - o teu olhar no meu -
incompreensível como a terra na sua órbita
oração das estações para que permaneçam

*

GEOMETRIA CELESTE

Oito planetas giram
à distância de um pensamento.
          Espero um milagre
          deste mundo.
A faca apara as palavras.
          Encontro a eternidade
          na tua pupila
que se contrai e dilata.
Encontro o que se esconde no cinzento.
          Encontro o peixe
que sempre nadou na pedra.

*

ÊXODO, 13:9

Assim as estrelas vivem durante o dia
como um brilho atrás dos teus olhos fechados
como um sinal na tua testa.
A árvore sonhada floresce
sem nenhuma fórmula para a sua beleza.
Poiso a minha mão no teu ombro
deixo dois dedos escorregar ao longo do teu pescoço
passando na tua orelha.
Desenho entre séculos
uma escala laranja de vozes.
Escrevo o nosso tempo
do carvão ao diamante.
Em breve terei o fogo
uma chama
que há-de acender-se entre nós
 - um rosto que brilhe.

*

CERNE

Eu era uma noite de agosto, para lá do gelo dos planetas,
era a mão que agarrava e prendia,
era uma avalanche, uma parece preto-sangue em chamas,
era uma passagem rasgada no coração de minha mãe,
onde ela tinha que decidir
                              se valia a pena viver,
era o desejo do meu pai, era o perdão,
era o pulso na terra, as veias mais profundas,
era o orvalho na relva numa manhã gélida,
era uma flor e o cheiro de néctar,
era um gosto doce que escorre
da maçã de casca azeda e rubra
 - cerne
que sem se afundar cavalgava sobre a água
e deu à costa numa praia virada a Norte
no quinquagésimo sexto paralelo,
eu era o escondido que foi encontrado por um raio de luz,
visto pelo olho de um anjo -
um olho que pensava estar perdido,
lá onde a praia era branca de sal, a areia leve como cinzas
e o faial forçava os declives acentuados
a serem refelctidos na água,
                                          um eco atrás de outro...
eu era uma febre fumegando no sangue,
era membrana que rebentava, as aves que pairavam,
era o vento silvando sob a cúpula das coroas das árvores,
um zumbido de sons que se dirigia sem peso
para onde os trilhos são apagados,
                                          e não há caminho de regresso,
para o campo magnético do oculto, para a zona de escuridão que atrai,
de onde todas as letras do alfabeto saltam
 - para a luz e se revelam
                    para no silêncio criarem raízes
                                           num presente sem fim,
onde vivem as sombras e são devoradas.


in Pia Tafdrup, Ponto de focagem do oceano, Lisboa, Quetzal editores, col. Poetas em Mateus, 2004: 18, 26, 33, 35, 50

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