sexta-feira, 9 de março de 2012

Bernardo Pinto de Almeida - 5 poemas

destes


Raciocinemos sem receio, a névoa resistirá.
Beckett

Destes combates que transporto
há-de surgir a voz, etc.
Só existo na boca quando
a abro para a passagem das palavras e
é na primeira delas que me vou
 - o meu cavalo.

O tempo. O tempo.

O que comunicamos.
O que a vida produz
ao deslocar-se.

O resto é corpo
e tudo
é o corpo.

*

o mar em chamas

todos os livros que leio me falam da tua morte
mas não se pode acreditar em tudo o que se lê
e sabendo embora que a tristeza não existe
não posso deixar de me sentar com a cara apoiada numa das mãos

a vida é uma doença de que alguns se curaram
passo os dias sentado num café à distância
e entre mim e mim existe já uma intimidade insuportável
(como dar de novo ouvidos aos meus mestres de outrora?)

fui dos que julgaram ter nascido para tornar grande o mundo
mas atrasei-me de propósito num quarto cheio de homens
 - procuro perceber que é o tempo que me cabe - 

uma noite fui visto a lançar fogo ao mar

*

apolo

Caminha pobre
mesmo que em teus ombros pese
o oiro

Nada sonhes
que te acorde
sem remédio

*

carta de navegação

Talvez além do que tu vês
não esteja nada
nem a alada criatura com que sonhas
sequer a sombra da sombra de uma sombra

Talvez nisso que vês só haja o espelho
de um desejo sem rosto e sem esperança
que toda a vida (às vezes) seja apenas
esse deserto crescendo à tua volta

Aprende a não amar o amor
a nada querer
não desejar o desejo
nada ter.

*

radar (1)

Há noites assim não de outra coisa
que são de si mesmas cheias
até ser insuportável
até cada corpo cheirar exactamente
ao cheiro da sua alma. Há noites assim
que somos nós: Deus nos defenda
de tanta noite haver por dentro
por fora de nós mesmos.


in Bernardo Pinto de Almeida, e outros poemas, Lisboa, Quetzal editores, col. poesia, 2002: 19, 23, 35, 41, 47.

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