sábado, 25 de fevereiro de 2012

W. G. Sebald II



Autor: W. G. Sebald
Título: Vertigens. Impressões.
Editora: Teorema
Tradução: Telma Costa


          E ainda Sebald, retornar a ele, cair nele como se cai em paixão. Sem se saber porquê e cair desde logo, caindo pelo que não se sabe, por pequenas coisas que é tudo, que é tanto pelas pequenas coisas, como pelas grandes coisas que é o todo, um todo desfocado, que nos apanha desprevenidos porque caídos em tudo das pequenas coisas; e cair vertiginosamente. Ou então, exactamente, justamente, calma e docemente na memória das coisas, grandes e pequenas, principalmente as pequenas.
          Este livro trata disso, da queda na memória e como a memória trabalha em nós em proveito da ficção, pela e para a ficção; parecendo até, sinto-mo-lo ao longo das páginas, que Sebald nos demanda, num murmúrio quase inaudível, uma questão: quem ou onde está a verdade da nossa memória? Estará na narrativa criada pela mistura de leituras que ele fez – leituras de relatos históricos, diários, cartas, fotografias – e cuja ficção escrita se propõe como a memória do autor por ele tratado, a jeito de biografia? Ou será antes mais verdadeira, porque recolhida «directamente» da memória da sua vida, o diário de viagem que nos apresenta?
          “Vertigens. Impressões” constitui-se, portanto, como um livro duplo, espartilhado em quatro e cobrindo, maioritariamente, três vidas: a do autor (surgindo, aqui e ali, «personagens reais» do passado ou do presente do diário), a de Henri-Marie Beyle – mais conhecido pelo seu pseudónimo, Stendhal – e a de Franz Kafka (que neste volume acrescenta há tão já conhecida letra K. o título honorífico de doutor). De um lado temos, pois, duas biografias e, do outro, dois diários de viagem. Porém, mesmo as biografias tratam das viagens realizadas por Stendhal, geográficas – pelos Alpes e Itália – e sentimentais, as quais conduziram à criação da sua obra romanesca, bem como a de Kafka por Veneza e a sua estadia no sanatório de Riva. E juntando estas viagens temos um país como denominador comum: Itália; passando pela sua aldeia W. e o retorno a Inglaterra.
          Lentamente, no decurso da leitura, descobrimos a justeza do título da obra, que segue a par – como dissemos no texto anterior – a justeza depurada da linguagem de Sebald. Todavia, pressentimo-los, igualmente, duplos, justeza e título: há as impressões marcadas na memória, traços que (per)seguimos e que nos abismam, conduzindo-nos à vertigem do tempo passado – encontramos, por exemplo, no último texto aquando o retorno a W. a procura das marcas passadas e já pouco legíveis forçando o leitor a cair nas suas lembranças quando criança; há, por outro lado, as impressões das suas leituras sobre Stendhal e Kafka que o convidam a seguir viagem a Itália, a perder-se pelas ruas, a entrar numa queda vertiginosa onde Sebald se vê completamente desorientado, angustiado, perdido, guiado pela vertigem da paixão pelos autores, pelas telas renascentistas, as igrejas, as capelas, as praças, as gentes; há as impressões retidas no seu diário, a vertigem dos seus relatos, do seu discurso claro, limpo e, no entanto, quase barroco, na vertigem dos redondos e do infinito do barroco, discurso esse que, inevitavelmente, nos causa uma tremenda vertigem.
          Voltar à paixão: um corpo, uma pessoa, uma vida, uma palavra, uma pequena coisa que, num instante, nos impressiona, que deixa uma impressão e é tal a pressão que caímos em vertigem.

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