terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ernesto Sabato



Título: O Túnel
Autor: Ernesto Sabato
Editora: Relógio d'Água
Tradução: Francisco Vale


          Sempre disseram e se ouviu dizer, ao ponto de ser hoje um enorme cliché, da especificidade dos olhos, essa estranha máquina de captação da luz e do mundo, que olhá-los é ver a alma, que são eles o espelho da alma. Sobre isso nada posso dizer. Olhar directamente nos olhos da Medusa, na sua alma, pois, transformar-nos-ia em pedra, num mudo e estático mineral para todo o mundo. Por outro lado, olhar o abismo, o sem-fundo, que também nos olha em resposta, igualmente nos pode conduzir a uma mortal vertigem sem retorno. Que não se olhe demasiado, então. Deixemo-nos estar no jogo de captar e ser capturados, no mítico jogo de Diana e Actéon, sem que qualquer um dos dois se torne caça do outro. O olho vê; e vendo que guarde o que o ligou ao mundo para depois se devolver o visto passado pelo nosso crivo, mudando o mundo com uma oferta a ser ligada e captada por outro. Passando pelo crivo alguma coisa se recupera, é trazida clandestinamente, talvez a própria alma. Talvez tenha sido isso que “María Iribarne” viu na pequena janela, que mais ninguém reparou, nesse quadro desenhado por “Juan Pablo Castel”, da primeira obra de Ernesto Sabato: “O Túnel”.
          Tendo passado pelo seu nome várias vezes, adiando a sua leitura, motivou-me a triste notícia da sua morte no passado mês de Abril de 2011 e uma belíssima crónica de António Cabrita. Contudo, toda a tristeza que senti foi, desculpem a frieza e franqueza, o adiamento de tantos anos e só o ter lido no passado mês de Novembro. Nasceu na Argentina em 1911, formou-se em Física, fez investigação na área das radiações atómicas e foi, durante alguns anos, professor, até se dedicar completamente à escrita e pintura em 1943. O seu primeiro livro, em 1945, foi um conjunto de ensaios filosóficos e científicos, porém “O Túnel”, seu primeiro romance, saído em 1948, de imediato o inscreveu na História da Literatura do século XX e de lá o seu nome não mais sairá – pelo menos no da minha história.
          A estrutura deste romance sustém-se nas intrincadas malhas dos policiais. Escrito na primeira pessoa, “O Túnel” é o relato confessional, inquiridor, do pintor Castel, de dentro da prisão. Não há entradas laterais pelos ramos de famílias, deambulações descritivas de paisagens. O autor guia-nos ao núcleo da consciência do pintor, por um excesso de lucidez, de razão, de pensamento reflexivo, isento de qualquer labirinto. Caminhamos como o marido cego de María Iribarne, a mulher fatal, ao longo de todo o percurso obsessivo a cada passo mais estreito, no qual a negra luz ao fundo será senão outra coisa que a abertura da pupila do olho de Castel. A mulher é fatal, sem dúvida; não no sentido do romance negro, antes pelo que leva Castel à fatalidade, pelo que ela sabe, do que viu na janelinha pintada – o que mais profundo o pintor trouxe de si a uma superfície – e não consegue reproduzir por palavras. Ela entende aquele homem, essa Diana caçou o Actéon-Castel que a observou durante a exposição a deleitar-se com o pormenor; porém e por isso mesmo está impossibilitada de o revelar, revelar Castel a Castel, que da janela da sua cela se vê, revê o processo da sua paixão e do seu crime.
          E que mais poderei dizer sem que cometa o crime de impedir de ler Ernesto Sabato? Que os vossos olhos percorram “O Túnel”.

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