terça-feira, 21 de junho de 2011

Pierre Klossowski


Título: Baphomet
Editora: Campo das Letras
Tradução: Clara Alvarez

Assombroso será, talvez, o adjectivo mais acertado para qualificar – como se houvesse sequer, na verdade, uma palavra que pudesse definir a força de um texto – esta obra e o seu autor.
Pierre Klossowski (1905-2001), nascido em França e de ascendência polaca é o terceiro nome desse trio maldito – não tanto no sentido romântico, como essa figura atormentada pelo toque da genialidade e em perpétua queda pelas forças da vida e do tempo, mas antes pela acutilância da razão e do espírito, vulcão de inteligência que nunca chega a alçar-se aos tronos da literatura ou da filosofia, encontrando-se sempre à margem, posição afirmada pelo próprio, embora a sua importância atravesse, umas vezes anonimamente, outras pela citação, vários campos do saber – ao lado de Maurice Blanchot e Georges Bataille, fazendo do pensamento uma aventura que se deseja partilhar. Como exemplo disso, Jean-Jacques Pauvert, em 1987, contou uma anedota sobre um jantar entre estes dois escritores: “Uma vez, num jantar em casa de Pierre Klossowski, começaram ambos [Bataille e Klossowski] uma discussão teológica. Estavam em completo desacordo, devolviam uma ao outro citações, e a discussão prosseguiu em latim. Os restantes ficaram de boca fechada” (cit.in. prefácio a Bataille, História de Ratos (diário de Diannus), Lisboa, Hiena Editora, 1988: 12).
Germinado numa família de intelectuais e artistas – o seu irmão, conhecido por Balthus, foi um grande pintor – frequentada por Rilke e André Gide, chegou tarde às letras, passando vários anos estudando psicanálise, filosofia e teologia, intrometendo-se, conquanto mantendo as devidas distâncias, em grupos de vanguarda e suas revistas, ligando-se à clandestinidade da resistência à ocupação alemã. Mas em 1947 marca definitivamente o início da sua longa carreira com obras ensaísticas sobre Sade, Nietzsche, a decadência romana, o mito de Diana e Actéon, sobre o desejo e o erotismo, bem como romances impressionantes, misteriosos, assustadores como a trilogia “As leis da hospitalidade” – dois com tradução portuguesa numa única edição da Livros do Brasil, bastante raro de encontrar, “Roberte-nessa-noite seguido de Revogação do édito de Nantes” – “Le Souffleur” e este “Baphomet”. Dedica-se igualmente ao cinema, quer como realizador e argumentista, quer como actor; e à pintura, passando os seus últimos vinte anos produzindo desenhos e aguarelas que reflectem toda a sua obra anterior.
Ora, “Baphomet” – um ídolo que toma várias figuras humanas e animalescas e sendo uma das fontes do processo de acusação de Filipe, o Belo, contra os Templários por suposta adoração – é, se quisermos encaixá-lo nalgum fácil enquadramento, um romance histórico, uma vez que, cronologicamente, o livro se centra nos últimos dias dessa companhia de monges militares. Todavia, isso nada mais será que uma redução falaciosa. “Baphomet”, no mais, será, para além de assombroso, um ensaio romanceado, um romance da maturidade do pensamento filosófico-teológico, se quisermos dar nome ao conjunto daquelas palavras.
Os Templários, o jovem Ogier de Beauséant, a sua tia, toda a trama que se cria em redor da paixão, no seu sentido mais forte e menos afectivo do termo, que envolve a entrada na companhia e o sacrifício desse jovem, são a perfeita tela para que Klossowski discorra sobre a crítica relação que compõem o corpo, a alma, o espírito e o sopro. Jogado a dois tempos, o romance desenrola-se inicialmente no séc. xiv e desenvolve-se na eternidade do instante do reino de Deus, desvanecendo a fronteira do que é o simulacro, pervertendo todos os conceitos. Baphomet torna-se, no romance, não só no símbolo diabólico – reúne conceitos separando-os do seu contexto – como igualmente, pela sua espiritualidade, se vê como um diábolo simbólico – procurando separar sopros do seu propósito de se reunir na eternidade em Deus. A questão de fundo da obra extravasa o comum do romance histórico, o que debaixo vibra é a interrogação do que é e no que consiste a relação do corpo com a alma e o sopro (o pneuma).
Uma obra deslumbrante, complexa, intrigante e para ser lida uma, outra e outra vez, só para começar.

Sem comentários: