quarta-feira, 22 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (xv)

Uma vez cá fora tínhamos todo um mundo por descobrir e um prato para comer. Já deveriam ser quase umas dez horas e não comíamos a outras tantas, estávamos estafados, com sono, aparvalhados, apalhaçados mas esforçando-nos por ter o ar mais digno e sabedor do que iríamos fazer. Não queríamos dar a entender que aquela era a nossa primeira vez em Fès, queríamos que quem olhasse para nós percebesse pelo nosso ar que sabíamos o que fazíamos. Nós cá hã! Sabemos o que queremos hã! Estão ouvir? Queremos três coisas, papinha, chichi, cama. E de tanto esforço de ar entendido parecíamos umas baratas tontas de um lado para outro, a subir e a descer ruas. Passávamos por pizzarias, casas de sandes, tascas, mini-rolotes de kebabs, cafés, tudo cheio de gente feliz e a comer. Mas nós sabíamos o que fazíamos. Parávamos, olhávamos e seguíamos, parávamos, olhávamos e seguíamos e a fome crescia e os quinhentos metros que nos levava até ao Zagora já os tínhamos corrido. Se nos perguntassem onde queríamos ir, tínhamos resposta na ponta da língua: Zagora; mesmo que não fosse isso. Se nos dissessem que estávamos a ser um bocado parvos, diríamos pelo contrário que nos estávamos a fazer de difíceis. E de tanto andar parámos e discutimos à frente de um restaurante para tentar perceber onde e quando é que afinal íamos comer: vamos a este, vamos àquele, aqueloutro? Ninguém se queria decidir. O T. dava uma de Pilatos e passava a bola para nós, a S., não queria ser ela a decidir e eu calava-me sem comer. Até que muito rabugento, o que é normal em mim quando fico sem comer durante muito tempo, muito acintosamente disse: vamos já a este, é barato e depois logo se vê (ou qualquer coisa assim do género): Al Khozama.
Dissemos boa-noite aos clientes que se encontravam a beber café e chá na esplanada e entrámos, empurrando uma porta de madeira com pequenas janelas, e descemos três degraus para dentro do pequeno restaurante de azulejos de casa de banho e enorme balcão, meio inox meio envidraçado, ostentando a carne e o peixe, sumos, águas e coca-colas. Por cima do balcão estavam expostas várias fotografias dos diferentes pratos disponíveis. Bon soir, on peut dîner? Oui. Para além de nós, havia apenas dois casais sentados em mesas para duas pessoas como num qualquer restaurante. Um par oriental a terminar a refeição e outro europeu ainda à espera para começar. Sentámo-nos a um cantinho da sala que dava para uma janela e para a rua. Agora sim, bendito seja Allah. O dono do restaurante, um tipo bastante simpático e novo, fazia tudo sozinho, atendia, cozinhava, servia e recebia com uma calma incrível. Depois de tentar perceber no que consistia cada prato, decidimo-nos por um kefta (carne picada em bolinhas que mais pareciam salsichas frescas), uma tajine (um guisado de vegetais e carne) e umas costeletas de carneiro. Silêncio absoluto por momentos, a fome, como o gato, comeu-nos a língua, o sono atacava. Fumávamos um cigarro, o T. ia dando uma vista de olhos ao guia turístico e esperávamos a comida enquanto bebíamos coca-cola. Até que de tanto esperar a língua se soltou e recomeçou a palhaçada e os pch cala-te e comemos, satisfeitos com tudo, a simpatia do Sr. Khozama, a comida, a conversa, o café fraquito e os cigarros e mais a palhaçada. E depois o baque total, a dormência dos músculos, os olhos a fecharem-se, o estômago ovalado e morno, a língua entaramelada. Shukran, monsieur, shukran, shukran, bon soir, bessalama, bessalama.
Arrastámo-nos para o hotel, pedimos as chaves, subimos o elevador a dizer baboseiras e combinámos o que iríamos fazer no dia seguinte. Aí por volta das nove encontramo-nos ali na sala e vamos até à Medina, disse o T. e nós, tudo bem até amanhã. Enfim, uma cama, enfim, uma barriga cheia, menos enfim a contínua prisão de ventre que nem o cigarro ajudava.

(cont.)

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