sexta-feira, 24 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (xvii)

Meios escondidos dos olhares locais, abrimos o mapa e vimos o que teríamos de andar. Não era muito, mas era bastante. Tínhamos de percorrer uns dois ou três quilómetros através das boulevards, ribanceira acima e ribanceira abaixo, com plena consciência de que saíamos da cidade e entrávamos numa zona mais rural com pequenas elevações e depressões plantadas de eucaliptos e couves, ajuntamentos de lixo e casas com a arquitectura dos bairros de lata, mas não por muito tempo. À saída da última boulevard ficava um imponente Mcdonald do lado direito e uma estrada sempre a descer ao género da Calçada da Carriche e com os tais campos plantados. Quando chegámos ao fim era preciso cortar tudo para a esquerda e evitar os carros que aceleravam vindos lá de cima, quase como atravessar a Segunda Circular. Como nos aproximávamos da Medina, começaram a surgir mais habitações mas ainda muito rudimentares, daquelas de adobe como se vêem nas fotografias e nos documentários. Por ali acima, à nossa esquerda, principiavam a nascer pequenos bairros que aumentavam o número de casas quanto mais próximos da Medina, já que a Medina tinha sido a antiga cidade e só depois abriu as suas portas para o resto de Fès. Mais à altura do nosso olhar espraiava-se um relvado com crianças a jogar à bola e outros a praticarem capoeira, que assim que nos viram chamavam-nos a atenção mostrando as suas habilidades perguntando se nós não queríamos juntar-nos a eles. Sorrindo dizíamos à la prochaine fois, coisa que não haveria de todo e continuávamos, agora, a subir.
À nossa esquerda começava a surgir um quase imperceptível rumor de gente, sons, vozes, gritos, buzinas, música. Aproximávamo-nos de uma das entradas da Medina já cheia de vida e movimento, carros, motas, táxis, autocarros de turistas e burros de carga e os inesquecíveis carneiros de cara preta. Ali naquela praceta tinha sido declarada a independência de Marrocos e evitávamos ser atropelados e pisar todo o tipo de lixo. Era quase impossível ficar parado a olhar para as pessoas, para as casas de três andares de varandas e telheiros de madeira, as fantásticas janelas com arabescos, os candeeiros. Era preciso entrar no circuito, mergulhar na Medina, infiltrar-nos por onde desse.
Mal passámos a porta um novo mundo foi criado. Andava-se ombro a ombro com as pessoas, com velhos de longas barbas e djellaba, mulheres com crianças às costas e longos lenços negros e medalhas ao pescoço, miúdos a correr com o ranho a escorrer do nariz e grandes sorrisos, adolescentes à cata de estrangeiros para servirem de guias, a venderem kif e haxixe, homens de todas as idades a correrem com um carrinho de mão cheio de botijas de gás ou carneiros, rapazes a puxarem carneiros pelos cornos aos dois e três, burros pachorrentos cheios de vegetais, roupas, trapos. Tudo metido em ruas estreitas com lojas a seguirem umas às outras e bancas a mostrarem o que vendiam. De repente alguém parava para ver uma coisa mas o rio continuava, moldava-se, envolvia. Pessoas subiam, pessoas desciam, cantava-se, gritava-se, chorava-se, sorria-se. De rádios dos interiores das lojas ouviam-se notícias, músicas, flautas, darbukas, as melopeias dos cânticos. Telemóveis ligavam pessoas de uma ponta a outra da Medina, de Marrocos. Pregões de loja a loja, bocas a chamarem a atenção, bocas de conversas, bocas de gozo, bocas de regateio, bocas com dentes e sem eles, dentes em mostruários, ao pescoço, a morderem frutos, pão, chocolates. Jogos de luz e de sombra do sol que já ia alto por entre as ruelas, pelas travessas atoladas de pessoas, de bancas. No caos daquela arquitectura, daquele labirinto onde o Minotauro é que seria comido, tudo estava ordenado por secções. Tínhamos a secção das roupas, sapatos e ténis, as djelabbas para homem, mulher e criança, os tapetes de todos os tamanhos, almofadas de cabedal e lã, os instrumentos de música, as bijutarias, os anéis, os colares, os relógios, os brinquedos, depois a secção dos vegetais, da fruta, das padarias e doçarias, das especiarias, a pimenta, o açafrão, o caril, os cominhos, os orégãos, o gengibre, o pimentão, a canela, uma mistura de cheiros e cores, mais à frente debaixo de grandes toldos toda uma rua à sombra de bancas e bancas de carne, galinhas, carneiros ao infinito, vacas, cabeças cortadas e sem pele de olhos esbugalhados a sorrirem, grandes pedaços de carne a serem retalhadas escolhidas a dedo, bifes e costeletas enroladas em papel pardo e postos em sacos de plástico preto, o paraíso das moscas dos cães e dos gatos que por lá passeavam.

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