quinta-feira, 23 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (xvi)

30 de Dezembro de 2006



Estendemo-nos na cama e pusemos o despertador e não têm nada a ver com isto e por fim tirei da minha mochila o Paraíso Perdido que tinha recomeçado a ler para o mestrado e li o primeiro canto à S. que adormeceu de imediato. Eu próprio não aguentei muito e também adormeci, só que, passado algum tempo, acordámos com música vindo da rua. É que aquele terraço que se via da nossa janela não era mais do que uma discoteca, mas também não durou muito tempo porque o cansaço era tal que adormecemos outra vez. Mas depois, valendo agora a pena ser acordado, o silêncio que já se fazia na rua foi maravilhosamente cortado. Eu já tinha tido esta experiência em Casablanca e tentei explicá-la muitas vezes à S., mas uma vez mais, não é a mesma coisa ouvir contar e presenciar (mas também se pode contar ou escrever aquilo que se presenciou de tal maneira que aquele que ouve ou lê pode mesmo sentir mais do que aquele que contou ou escreveu, o que não é o meu caso). Lembro-me que às quatro da manhã se acendeu o minarete da mesquita de Casablanca no escuro daquela noite quente de verão, aquela única luz lá em cima e do silêncio vindo sabe-se lá donde aquela voz grave que num vórtice se foi alojar no fundo do ouvido, aquela voz magnética que foi subindo e subindo e puxando por nós até nos agarrar completamente. Como a S. ainda estava mais ou menos desperta disse-lhe apenas de mansinho ouve. E do fundo da noite até aos nossos corações atravessou aquela voz e como já alguém disse, sobre algumas coisas é preciso o nosso silêncio. Shukran e boa-noite.
Ia amanhecendo em Fès, o despertador dizia-nos que eram oito horas e fomos à vez escalar a banheira. A S. ficou a marinar um pouco mais e eu despachava-me o mais rapidamente possível sem fazer muita porcaria. É um bocado parvo isto, não é?, uma pessoa toma banho para tirar a sua porcaria e tenta não emporcar o que está à sua volta. Mas bom, quando saí foi a vez da S. escalar e vestir-se e lá fomos nós cá para fora já com as mochilas às costas. Batemos à porta do T., mas claro que ele estava um bocadito atrasado, por isso, e agora sim, pudemos ver a sala de estar com a sua luz natural. Era uma sala ampla e alcatifada, com uma grande mesa ao centro e sofás a toda a volta. Paredes de madeira com quadros e fotografias de muitas partes de Marrocos. Duas grandes janelas com varandas que davam para um jardim e para as largas boulevards e altos prédios do tempo da ocupação francesa. Era uma manhã fresca e movimentada, um dia de Primavera e não de Inverno. Íamos comendo pedaços do bolo que a amiga da mãe do T. tinha cozinhado, esse feito de frutos secos e coca-cola, e esperávamos dizendo os bons-dias a tudo. Entretanto o T. já se devia ter despachado mas não chegava e eu acendia um cigarro sentado num sofá. Passado, sei lá, um quarto de hora aparece o T. que, aparentemente não nos viu na sala e saiu à nossa procura na rua e como não aparecíamos resolveu ver se estávamos no quarto. Quando nos encontrámos no hall do nosso andar resolvemos o nosso pequeno desencontro e decidimos tomar o pequeno-almoço no Al Khozama.
Agora sim já conhecíamos os caminhos que nos levavam à comida. Chegados ao Al Khozama sentámo-nos na esplanada e após um respeitoso ssalamu ‘lekum mútuo pedimos café, uma tosta de queijo muito semelhante àquela que vos falei na Ceuta espanhola e leite ou sumo. O T. ia lendo o seu guia para delinear o nosso percurso do dia e preparava a sua máquina fotográfica, enquanto a S. e eu íamos olhando à volta vendo as pessoas passar e trocando algumas palavras. Comemos, fumámos e tentei uma nova investida à casa-de-banho minúscula e não muito limpa o que Fès com que as minhas necessidades arrepiassem caminho. Desta feita, averiguámos junto do Sr. Khozama onde é que podíamos comprar um mapa de Fès para perceber melhor o quanto é que tínhamos de andar até à Medina, porque não parecia haver necessidade de transportes públicos. Na tabacaria em frente no outro lado da rua haveriam de certeza mapas e era verdade. Ao jeito tipicamente turístico tirámos uma fotografia todos juntos com o Sr. Khozama prometendo que depois enviaríamos uma cópia, coisa que ainda não fizemos mas haveremos de fazer. Depois de termos pago a conta e de mais um ssalamu ‘lekum ‘lekum ssalamu atravessámos a rua e procurámos o dito mapa e aproveitámos também para comprar tabaco, já que eu tinha apenas umas poucas folhas ambarinas e o T. nada para fumar. Nada mau os dois maços de Marquise por 30 dhirames, enquanto que o T. teve de pagar mais porque levou para além do Marquise um Camel a preço de importação que é quase o mesmo do que em Portugal. A tabacaria não era muito diferente das que ainda se encontram em Évora, por exemplo. Um balcão grande de madeira cheio de jornais, várias estantes com revistas e livros de poesia e romances em francês e árabe, por trás do balcão grandes prateleiras com tabaco e outras bugigangas, com a excepção de não existirem quaisquer revistas pornográficas, se calhar só para clientes habituais. Estávamos quase prontos, só faltava que eu e a S. comprássemos uma máquina fotográfica descartável, para que também nós tivéssemos os nossos momentos kodak. Encontrámos umas ruas mais adiante uma dessas lojas reveladoras e de venda ao público com tudo o que era necessário ao fotógrafo profissional e de fim-de-semana. Agora sim, venha daí a Medina e o souk.

(cont.)

Sem comentários: