quinta-feira, 16 de junho de 2011

em cinco dias évora-fès-évora fiz (ix)

Bom, onde é que eu ia? Antes de termos feito a reserva, fomos ver ainda um outro hotel, Hotel Rif ou Kif, já não me lembro bem, mas este não tinha quartos livres e era mais caro. Aliás, quando voltámos atrás para o Madrid, um dos miúdos que falava com o T. disse-lhe, disse-nos o T., que fizemos bem em não ir para o outro, o Rif ou Kif, pois era mais caro e era. Depois de termos feito a reserva partimos uma vez mais, desta feita em direcção a Fès, era importante chegar lá antes que anoitecesse. Descemos Chefchaouen e virámos à esquerda, para descermos ainda mais para sul no território marroquino. Tínhamos acabado de sair e o T. diz-nos que aquele miúdo com quem conversara lhe tinha explicado que Chefchaouen, mais conhecida por Chaouen, queria dizer “olhar os cornos”. Ao lado da cidade, numa das ribanceiras da serra vêem-se duas formas geológicas, duas rugas como dois sobrolhos arqueados ou, como eles dizem, dois cornos de cabra. Para mim foi mais fácil de ver e mostrar à S. e ao T. Para ele, como estava a conduzir, era-lhe mais difícil, enquanto para mim não, porque eu normalmente tenho por hábito abstrair-me facilmente e ver coisas, melhor dizer, dar formas às coisas, exercício de que gosto muito. As nuvens são coisas fáceis de se dar forma, mais interessante são copas de árvores, o raiado de pedras, o escamar das paredes, tanta coisa pode ser outra. Fiz até um desenho dos cornos, mas isso é meu e não mostro a ninguém, assunto arrumado. Começámos a subir mais uma vez e a meio de uma recta, já a uns bons dez ou mais quilómetros de Chaouen, quantos ao certo não vos saberei dizer, a S. e o T. trocaram de lugares porque ele já estava a dar o badagaio e mais valia ele dar o badagaio no lugar do morto do que todos nós darmos o badagaio e, desse modo, eu, enquanto morto, estaria impossibilitado de narrar esta história, o que não aconteceu, quero dizer, o badagaio total. Parcial sim, porque passado alguns minutos também eu badagueei para o lado mais cómodo dos casacos.
Quando despertei, o sonho ainda não tinha terminado. Atravessávamos uma extensa recta ladeada por dois campos a perder de vista de tanto verde que eram. Tapetes fofos de relva de horizonte a horizonte e muito ao fundo o topo do Atlas, branco na ponta. Já não estávamos em Marrocos, mas também não sei onde é que estávamos. Perguntei à S. se estava bem. Sim e tive um momento lindíssimo, espectacular. Vocês os dois estavam a dormir quando entrámos nesta estrada e de repente começou a dar o Agnus Dei do Rufus. Foi mesmo… eu não sei as palavras que ela disse, mas os olhos dela brilhavam e, por isso, sei que eu próprio não posso dizer mais nada. Eu compreendia-a e espero que vocês também me compreendam. Como pôr em palavras uma coisa que nos tira a respiração, que nos atravessa de lado a lado arrastando-nos para fora de nós e ficamos a pairar a poucos centímetros de nós vendo-nos estupefactos com toda a beleza que nos envolve naquele exacto momento? Para mim bastou-me o brilho dos seus olhos azuis. Eu percebi o que ela me dizia e fiquei apenas com a inveja do amoroso que não pode partilhar uma estado de beleza estonteante com o outro. O amor tem destas coisas, quando nos encontramos com o dilema de escolhermos entre acordar o outro, despertá-lo do estado mais sereno alguma vez ao alcance do ser humano enquanto vivo, e mostrar-lhe um momento (neste caso aquela paisagem com o Agnus Dei como banda sonora) que nos põe em êxtase. Sabemos que o outro vai degustar de uma maneira semelhante à nossa, mas que direito temos, mesmo o direito dos amantes amorosos, para retirá-lo do sono mais descansado possível? Fui despertando lentamente, admirando tudo o que nos envolvia. Admirava o grande verde dos campos pelo pequeno verde dos meus olhos, o grande castanho do Atlas e o grande azul do céu a esmaecer com o sol por trás de nós, a despedir-se lentamente. Também o T. foi acordando e minutos depois trocou uma vez mais de posto com a S.. Estava a fazer-se tarde, mas mesmo isso não o impediu de começar a tirar fotografias a agricultores que vinham no sentido contrário ao nosso com burritos e carneiros em carros de mão e grandes fardos de palha, Natural Geographic no seu melhor. Os montes começavam a cruzar cores entre si, castanhos com vermelhos, verdes com amarelos, castanhos com amarelos e verdes e vermelhos, castanhos com outros castanhos, verdes com outros verdes, amarelos, bom, já perceberam a ideia. Os cruzares de cores onde não há civilização muito presente, civilização essa que foi também surgindo com um número crescente de casas e carros a ultrapassarem-nos. Com o T. a velocidade aumentou e a distância a Fès diminuiu, mas não foi suficiente para chegarmos lá ainda com o sol em todo o seu esplendor.


(cont.)

Sem comentários: