quarta-feira, 20 de abril de 2011

Manuel Cintra - 4 poemas

crisálida

dissolver o cansaço na aspirina o açúcar a angústia
a lembrança no sono o tropeço os falhanços, ligar
com cimento, construir

chorar de vez em quando às escuras para a febre descer

polir palavras com escova colocá-las com pinça
no interior, derramá-las num jarro sem vinho sobre o papel,
deixar secar, recortar, recompor, calar gritos, escrever

sonhar os poemas que não se escreve, escrever os poemas que não.
podar as plantas nos filhos, mostrar os frutos, o caroço,
o saco do lixo, a hora de ponta, suor. depois lavar. levar
o peito à rua, receber os outros, perdê-los, trocá-los,
devolver este par de mãos àquele mar, afogar em esforço
a carótida torcida do tempo, parar sempre noutra esquina,
fugir à vertigem com o prazer das alturas, perder,

permanecer sentado até à dor nos ossos, cronometrar paciências,
aprender na lentidão a única saída,
rápida

e envelhecer.
acreditar?

*

ovos?

estala um riso pálido metálico
na ponta de um chicote que estremece
na ponta mais deserta deste cérebro
roo a corda é dura
ao fim do dia o eco de carne do som
que se rugia e agora só
se sopra e agora?

reparo no cansaço digo olá
reparo páro mudo peças
enterro a vontade de fugir
à pancada talvez abata o medo
que a planta de carne
de rir esteja máquina
de dormir

*

declarar crepúsculo no começar da tarde,
baixar a luz dos olhos até ao nevoeiro,
abrir cada janela, na carne, até parar o vento,
articular os dedos, menos esses vinte,
até não tocar nada.

abrir a boca. soltar a língua até querer
ser pássaro. lamber esse ar ósseo até que nasça
carne. evaporar palavras até as tornar gritos.
sem piedade. tudo.

cerzir as duas caras num tecido.
forrar.

*

talvez te encontre um dia
tarde, de noite, demais,
rodeado de livros e de rugas
escritas uma a uma sangue a sangue.

talvez eu chore, talvez tu.
seja qual for, terá valido a pena
de pato, ainda plantada
na asa ou já gasta de escrever.

virei nu.
hei-de atirar-ta
à cara essa nudez
que trago sempre no fundo
e me tem saído
caro.

caro com um beijo.
à cara como um beijo
depois.

in Bicho de Sede, Lisboa, Ulmeiro, col. Imagem do Corpo nº 31, 1986: 9, 28, 33 e 34.

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