quinta-feira, 28 de abril de 2011

Daniil Harms




Título: Crónicas da Razão Louca
Editora: Hiena Editora
Tradução: Sérgio Lima


Coisas estranhas o riso e o sorriso. Coisas estranhas. Humanas? O mais das vezes são reconhecidas como unicamente da nossa propriedade, como a linguagem, a arte. E no entanto duvida-se, há que duvidar do que se diz único, da propriedade única de uma espécie. A ciência e filosofia têm ao longo dos anos estirado as fronteiras, essas fronteiras de uma certa singularidade, e mostrado que os limites mais do que prescreverem proibições dão a conhecer e a reconhecer que o único é plurívoco, a propriedade partilhada, a singularidade depende mais da organização de traços comuns, o mundo são mundos de pequenas diferenças.
Mas pensemos ainda o sorriso e o riso como plenamente humanos. Haveria, assim como há para o belo e o feio, ou para certos comportamentos nossos, que fazer a sua história. São Tomás de Aquino e Tertuliano desprezavam-nos, mais o riso que o sorriso. Julgavam-no, o riso, um dos signos menos dignificadores do homem reconduzindo-o à animalidade, comparando o homem que ri a um gritante babuíno. Mas, claro, a sua crítica enquadrava-se num certo contexto, dirigia-se à comédia como forma teatral que rebaixava os mais altos modelos como a tragédia ou um teatro de cariz religioso. Todavia o riso, como uma convulsão do corpo – outro “objecto” das trevas, esse local tantas vezes tido de queda – será no mais uma expressão explosiva de uma força mal contida, cujo sorriso, mais do que esgar de uma máscara – não nos esqueçamos que significa “persona” – é a sua fulgência.
O riso e o sorriso, tão inocentes numa criança, têm tamanha força que se tornam diabólicos – ou seja, possibilitam a separação – num homem adulto e são de temer. Mas porquê? Teremos de argumentar partindo da comédia e tomando o riso como seu instrumento. Para Aristóteles a comédia tratava os homens e as acções baixas. Todavia, tendo em conta os comediógrafos da antiguidade sabemos que, na verdade, como o carnaval, a comédia inverte as estruturas de força e revela as suas fraquezas. Talvez seja essa a razão de todo o processo silenciador a que foram sujeitados tantos escritores de expressão cómica, irónica ou sarcástica. Já aqui apresentámos, pelo menos, um, Bulgakov; agora um outro seu compatriota.
Daniil Ivanovich Iurachov, ou como o seu apresentador em língua portuguesa nos informa, deu-se a conhecer ao público como D. Ch. (Daniil Charms, Kharms, Hharms, Haarms, Hormes, Hoerms, Dandan, Schardam, “conforme os tempos e conforme os caprichos” (p.10)). Nasceu em 1905 no seio de uma família burguesa, com todos os bens que isso concedia, algum dinheiro e uma óptima educação, aprendendo alemão, inglês e domínio do russo “digno de Gogol e Pushkine” (p.9). Mudando-se para S. Petersburgo quando as vanguardas ainda vibravam, mergulha nelas e aos poucos e poucos vai abandonando as suas raízes, largando igualmente os estudos, iniciando-se nas letras. É no seio do futurismo russo, na aventura linguística e literária que aí se possibilita, que Harms descobre a sua imaginação e arte. Pouco se sabe das suas publicações ainda em vida, uma vez que somente em 1956, quinze anos após a sua morte com trinta e cinco ou seis anos, foi reabilitado e em 1988 a sua “obra completa” editada, embora só haja “duas edições da sua obra em língua russa mas fora da Rússia (Bremen e Wurtsburgo). E quem quiser chegar mais longe, ainda hoje terá de recorrer (com cunhas) aos manuscritos conservados na Biblioteca Pública de S. Petersburgo” (p.12).
A sua obra, com tons surrealistas e absurdos, retrata o dia-a-dia pobre, grotesco, totalmente desprovido de sentido dos tempos russos que medeiam o leninismo e o estalinismo. Mergulha a revolução num perpétuo carnaval, procurando arrancar o riso à tristeza para, talvez, nos dizer, quando recuperamos a respiração antes de uma vez mais nos atacar com a sua mordacidade, que a revolução nunca acaba e vai muito para além da política e da economia, começando exactamente aí nesse além onde o riso é eterno.

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