quinta-feira, 31 de março de 2011

Julio Cortázar







Título: História de Cronópios e de Famas
Editora: Estampa
Tradução: Alfacinha da Silva


Pessoas há, bem mais qualificadas do que eu, para vos dizerem o que faz um grande, um bom, razoável ou mau autor. Esses, como leitores especializados, chamam-se críticos literários. Idealmente – poucos há assim – encontram-se entre o leitor e o teórico da literatura. Escavam o texto em busca da peça ou do fio no tapete, para utilizar uma metáfora de Henry James, que abra o texto para lá da leitura que segue o desenho. Não se trata de criar meta-textos, ou apresentar impressões e dar-lhe pontuações ou estrelas. É outra coisa e que hoje em dia está muito confusa e esquecida – parece que custa cada vez mais pensar e ler.
Ora, eu não sou, crítico, não estudei literatura ou a sua teoria. Poder-se-ia dizer de mim, que venho há já algum tempo apresentando livros e autores, que sofro de uma certa paixão incurável, ou então que sou mais um viciado, ou mesmo que a única forma de me sentir, de qualquer modo, são ou saudável é inocular-me com letras, permitir a passagem de substâncias, ar, nesse frágil contacto entre os poros da minha pele e essoutros dessoutra que se chama papel. Poder-me-ia, igualmente, definir como vampiro, sugando a vida desses corpos de sensações, essas obras estéticas. Por essa razão sempre defini como um factor essencial num autor e num livro a capacidade de mexer comigo, de me fazer sentir qualquer coisa, como por exemplo, o prazer de ler. Não se trata aqui de fazer jus ao livro desse fundamental e imprescindível crítico Roland Barthes, mas parece-me necessário, no que se trata das obras de arte, enquanto corpos de sensação, e, neste caso, das obras literárias, a dimensão do prazer. O prazer de se dobrar o tempo, como uma vez já aqui disse, o prazer de se construir um mundo ficcionado sobre este em partilha com um autor, mas também o prazer que se intromete ao sentir-se o próprio prazer do escritor, que também se sente. O prazer que passa palavra a palavra, parágrafo a parágrafo, etc., sorrir e rir com ele, respirar com ele, caminhar com o seu pensamento ou arrepiar caminho – também se poderia trocar o adjectivo e dizer dor, mas talvez isso seja somente outra qualidade de uma mesma palavra que aqui se apresenta como prazer.
Ora, “História de Cronópios e de Famas”, tal como o seu autor, Julio Cortázar (1914-1984), representam bem essa característica que sublinhei. Ali, nele, mesmo nos momentos mais tristes, sombrios, angustiantes – como nesse capítulo de “Rayuela”, ou na tradução portuguesa, “O Jogo do Mundo” e no Brasil “O Jogo da Amarelinha” (José Luís Peixoto estava enganado quanto ao tempo que demorou a tradução dessa obra única do séc. xx em língua portuguesa; quantas vezes a tradução brasileira, numa estante da casa dos meus pais, chamava por mim, desde que me lembro de olhar e pegar em livros) e porque não “Jogo da macaca” ou “Manecas”, como se chama este último jogo no Algarve e é o meu nome de família e de amigos próximos; dizia, nesse capítulo em que no início de mais um encontro de amigos em casa do protagonista, este se dá conta que o filho de sua namorada, esse bebé, está morto, estendido na cama e todos se vão apercebendo aos poucos e o encontro continua porque não se sabe como dar a notícia – há um prazer de se estar vivo – mesmo na morte – de se viver, com tudo que isso custa, estar vivo.
Cortázar levou uma vida imensa e expressou-se em vários domínios, da literatura à política, particularmente no que respeita à América Latina através, por exemplo, da sua participação no Tribunal Bertrand Russell II e a luta pelos presos políticos. Quanto à sua escrita, à sua arte literária, é, sem dúvida, um dos maiores escritores e inovadores do séc. xx e da história mundial, outro nome que assombra o prémio Nobel da literatura. Um exemplo disso, para além do fantástico “O jogo do mundo” – aguardo, pela minha parte, um esquecimento para poder ler a segunda parte – são estas “Histórias de Cronópios e de Famas”. Volume que agrupa quatro blocos de curtos contos em que a imaginação corre em todos os sentidos, retirando do mundo uma leitura imprevista. O primeiro, “Manual de Instruções”, descobre-se como a tomada de uma posição poética, uma ética muito especial, num tom quase surrealista; o segundo, “Ocupações Raras” debruça-se sobre uma “família rara” (p.29) de estranhos comportamentos, trabalhos e ócios feéricos; o terceiro, “Material plástico” é um mergulho em peculiares situações, devaneios, sonhos, uma deambulação entre o real e o fantástico; e o último, “História de Cronópios e de Famas”, é uma singular alegoria, porque não, um retrato da psicologia humana através de três seres estranhíssimos, esses dois do título e os/as Esperanças. Reitero o que uma vez aqui disse, os contos são uma excelente entrada no mundo de um escritor.
Pontuação: vários dias de sorrisos e lágrimas de prazer.

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