quinta-feira, 24 de março de 2011

arkaneftá (19)

como posso continuar este poema, onde somente o silêncio deveria existir, quando é com o incêndio que na minha cabeça ele vive? é do fogo que o poema nasce, porque é o próprio fogo o silêncio. um poema visual, onde o poeta, às vezes, pelas fendas do sangue abismado no centro de uma chama, ouve a língua dos mortos e, às vezes também, com todo o peso do coração na ponta dos dedos que seguram uma caneta, no centro completamente vivo da imaginação que se repete, deve encontrar a fuga.
esta fuga, de maneira nenhuma é calma, antes uma constante recusa, como os dois amantes se recusavam a deixar morrer e o seu amor, enquanto eu ali estivesse olhando o espelho.
a criança esticava a mão para o espelho pensando que era pela imagem que eles estavam ainda vivos e, como não suportava mais aquele exorcismo, aquela inquisição mascarada de dever absurdo, decidiu partir o espelho esmurrando-o. em vão a morte lhe sorriu nos amantes, ao invés, multiplicou a crueldade, o sangue, os ossos, os homens com a sua violência brutal, os sexos rasgados, numa teia maximizada na visão inocente, num abismo, que o oprimia, de um planeta de quartzo, na escuridão das causas que não entendia e ainda não.
os amantes enroscavam-se num casulo de carne retalhada, tossindo uma miscelânea de baba e sangue em golfadas e quando, finalmente, pele contra pele, se uniram, olharam-se, colando as duas testas num esgar que supunha um sorriso. uma vez mais o choque, para mim foi monstruoso. eles ainda sorriam um ao outro, como se se preparassem para dançar uma noite que tremesse pelo poder astronómico do nascimento de um deus, que finalmente nascesse, em vez desta fábula da demência e da animal chaga, de que são eles as personagens.

- como uma enorme estrela, fala de nós criança. nós não te queríamos quebrada pelos quatro elementos da terra, nem erguemos alguma vez a máscara do terror sublime. sabemos que temos a aparência de dois demónios famintos, sabê-mo-lo porque trouxemos de Saïs o leve poder da lua, apenas para os charcos dos teus olhos inocentes. se a nossa luz te encandeia, não julgues que te queimará os olhos. toca-nos com a tua mão esquerda, queima-a. la beauté s’ouvre sur les veines pour nous l'écrire avec ta main. criança, levanta as pálpebras, assim a estrela, como um clarão, com dois membros, toca-te toda.

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