sábado, 26 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - monólogo

6.

Ele era o meu mundo e caiu, o meu mundo caiu
de borco no chão. Atropelado quando andava
de bicicleta. Todo o meu mundo
partido, espatifado, quebrado,
de cabeça aberta. No chão
as coisas rídiculas, o seu chapéu,
uma flor e uns ovos, coisas
mortas. Ao que é que me agarro,
como é que eu as pego, como
é que as posso trazer comigo,
como é que as faço minhas agora?
Tu ali no chão não és tu, já não
és tu, não te reconheço, não és assim.
Não é assim que te vejo na minha memória,
não foi assim que te vi ainda ontem
e no entanto eram as tuas mãos
com o amarelo entre os dedos
e que me apertavam as minhas mãos,
perdendo-as no cerco das tuas,
que me estrangulavam os seios,
me estalavam as costas,
me puxavam o cabelo no carinho bruto.
Eram as tuas pernas curtas mecânicas
de viagem, as tuas pernas peludas
de encosto quente entrelaçadas nas minhas,
os teus pés pequenos de desequilíbrio e de dança,
a tua barba envelhecendo mais que tu,
a tua boca de lábios roídos de nervoso
que no sorriso revelavam os teus dentes de esquilo,
eram os teus olhos verdes com um girassol
que me viam como só tu me vias,
que nunca foram espelho mas sempre movimento,
acção, tristes, olhos de cão, que me perseguiam.
Todas essas partes estão agora reunidas
nesse corpo morto que vi
no chão, ainda quente.
Estavas tão tranquilo, sorrias.
Ao início pensei que brincasses comigo,
com as pessoas da Praça do Lagrido,
que tudo era fingimento, que representasses
uma piada de muito mau gosto
mas afinal era verdade.
Nunca pensei fazer o que fiz,
nunca pensei que tivesse a coragem
de me deitar junto a ti, como na nossa cama,
como quando nos deitávamos em cadeira.
Ninguém me impediu, ninguém me segurou,
ninguém evitou o ridículo daquele abraço,
o ridículo de agarrar o que já foi, o que já não é,
o cuidado de um vivo no amplexo de um morto.
Partir e ficar. Como é que as pessoas me podiam
dizer que partiras se estavas ali, comigo a pintar-te
a barba de vermelho, os lábios de lágrimas,
se me olhavas (porque vi
ainda os teus olhos a virarem-se
para mim). O teu silêncio
era normal, tão vivo como quando o eras.
A ambulância chegou e levaram-nos.
Estivemos tanto tempo separados
que não te queria agora
longe mim. Acompanhei-te
em todos os passos da tua despedida,
da maca para a marquesa da morgue
senhor do meu reino de amor e morte.
Despiram-te sem pruridos, como se veste
e despe um boneco, sem cuidados, trapos
de ninguém, de um corpo morto. Vejam lá
o que fazem, esse não é um qualquer,
quis gritar aos enfermeiros. Colem-lhe
a cabeça de volta, dêem-lhe uma injecção
de 21 grama de puro ar, insuflem-lhe
um pouco do meu amor, façam-lhe
uma transfusão de vida, de consciência,
qualquer coisa, mas não mo deixem ir
mesmo tendo já ido, sido. Ele
não é um qualquer, não é um. Foi um
pires, um filho bastardo de Maldoror,
o benjamim de si próprio matando-me e encontrando-me,
foi um pequeno monstro de quatro séculos e vinte e oito anos
nascido pela força de uma carta de um marinheiro, como
vim a descobrir quando cheguei a casa
com os teus restos, a roupa, o chapéu, a mala,
com os teus rastos, o teu caderno preto
escrito com essas malditas encenações da nossa morte
e a memória da tua verdadeira morte.
Li tudo, copiei tudo. Dormi com o teu caderno
enrolado entre as minhas coxas. Algumas páginas
estavam ainda em branco. Como te amo
deixei junto às tuas histórias a minha versão.

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