sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - retrato do artista enquanto jovem morto



Naquele momento preferia que estivesse a dormir e acordasse, desejaria que tudo, a leitura final do livro, a decisão de ir observar pinturas, o meter-me na bicicleta, o ter-me decidido vestir o impermeável por julgar que choveria, o entrar nesta maldita piada de mau gosto que era a exposição, fosse tudo um pesadelo, um engano e uma partida que me pregava enquanto dormia ao lado da minha companheira, queria que tudo fosse apenas uma grande mentira, um logro, uma ficção que escrevesse para me ocupar e para dar largas à minha imaginação e para me dar prazer. Tudo. Tudo menos isto, esta verdade estúpida. Pensei ainda que, de facto, era só imaginação minha, que escrevia o que realmente estava a acontecer, ou então, que era um truque da minha cabeça conspiradora fazendo-me identificar com a imagem do homem que nascia, crescia e morria daquele modo, na Praça do Lagrido, vítima de um acidente de bicicleta, fracturando a cabeça e despejando os miolos na calçada tornado comida para as bicadas dos pombos, esses ratos bucólicos e preguiçosos, que só gostamos noutras praças que visitamos, ou na primavera nos seus engates rolados e de peito cheio.
Toquei-me várias vezes, beliscava-me, saracoteava o corpo todo numa dança tribal que espantava o segurança temeroso que estivesse a ter um ataque epiléptico. Merda para tudo isto, dizia baixinho entre dentes só para mim, merda para tudo isto. Não estou a achar piada nenhuma a esta merda, não gosto que gozem comigo, isto é só para me arreliar. De certeza que agora o artista – artista?!, é mais é um charlatão, um comediante sem piada, de muito mau carácter, um estúpido que se ri à custa das inseguranças dos desconhecidos, das tristezas, dos medos, da ignorância, da vida dos outros – está numa cabine escondido vendo a minha reacção através de uma câmera de filmar, igualmente oculta, como nos apanhados, a rebolar de tanto rir de mim e depois mostrando a outras pessoas a grandeza da alma humana, todos a rir, a rir de mim. Mas e se tudo isto é verdade? Corri de volta para o primeiro quadro para me certificar, melhor, para reconhecer o rosto esforçado da minha mãe, ou se era então tudo uma ilusão que por qualquer razão me agarrei colando-a às minhas memórias, tornando aquele último rosto, aquele último corpo vestido daquela maneira tão semelhante à minha no dia de hoje, o meu próprio rosto barbudo, o meu próprio corpo, como o penso que é, mais os seus defeitos. Se fosse a cópia perfeita do rosto da minha mãe, então... então não podia ser, eu não poderia aceitar aquilo. O quê? Ver a minha própria morte frente a frente? Revelarem-me o segredo do meu fim, melhor será dizer, a hipótese, a proposta da minha morte? Sim, aquilo era mais uma aposta que me faziam, alguém me dizendo: eu acho que vais morrer assim e tu? Que dizes disso? Que morte será a tua? Podes antecipar a tua morte à visão que tens dela? Queres apostar qual dos dois está certo? Mas era, era o rosto da minha mãe, não me enganava nem me enganavam. Não era um erro. Era de facto o rosto da minha mãe, vermelho de força e o bebé a nascer enforcado – sim, porque me lembro da minha mãe contar que eu nascera de pé, enforcando-me no cordão umbilical e salvo por um dedo enganchado de um médico. Por isso eu não vi o rosto do bebé, por isso eu não reconheci o rosto da minha mãe, nunca lhe tinha visto aquela expressão. Vi-a zangada, triste, feliz, doente, esfomeada, com dores de cabeça, calma, sonolenta, adormecida, magoada, a desfalecer, a enrugar, a chorar, enervada, nervosa, excitada, todo o arco-íris de emoções que podemos dar nomes, mas aquele não. Não aquele, mostrando um esforço muito diferente do de levantar um peso, misturando amor e ódio à criatura que nasce, que amorosamente lhe rasga o útero e os lábios, que a sangra, que a esgota, que treme de frio e de medo, cego, feio, gelatinoso, escorregadio, igualmente esgotado, espoliado, roubado – como tanta dor pode gerar tanto amor mútuo?
Era ela e era eu e aquele foi o dia em que me ergui e aqueloutro o dia da minha primeira imitação correcta de um som com algum significado e aqueles os meus primeiros amigos já esquecidos que nunca mais vi e nem sei se estarão vivos ou casados, se trabalham, se viajam, se têm filhos, se estão mortos; e ali a rapariga que me deu a volta ao estômago e não o quis quando o apresentei como o meu primeiro origami em forma de borboleta e depois aquela que ao início não lhe queria dar e mo foi roubando aos poucos e poucos até que assumi o que já sabia mesmo antes de a ter visto, que nos faríamos um para o outro e ali eu morto. É pá, não me façam isto, não me digam que é hoje que estava tão contente, tão feliz da vida, tão cheio de planos, tão pleno de vontade de futuro. É que não é pela idade, mas é que não me dá jeito, percebem. Claro que só num ou noutro caso é que dá jeito morrer, quando se tem vontade disso, mas eu, eu pá, estão a ver, gosto disto, por enquanto gosto disto e não me dá jeitinho nenhum nem acho piada alguma. Merda.
Por que é que não acordo? Por que é que me querem dar uma coisa que não quero? Não para já. E o que é que eu faço com isto agora, com esta prenda adiantada, se não tenho crença alguma, se sei que não há volta a dar, que nem é um beco sem saída mas uma rua de sentido único. Mesmo indo parar a um caixão, esse obstáculo não faz da morte um beco, mas completamente uma rua de sentido único que se vai fechando, afunilando, até ficarmos presos num buraco.
Talvez pudesse fugir à minha morte, talvez se evitasse a Praça do Lagrido, me despisse desta roupa, encontrasse outro caminho para casa. Preciso de um café, de uma bebida, preciso imediatamente de um cigarro, do meu amor ao pé de mim, que falem comigo, que me mostrem coisas, que me levem daqui para qualquer lado, que me dêem uma chapada na cara para acordar para a vida. Por favor dêem-me qualquer coisa para além da minha morte. De certa forma preferia o que havia antes, a certeza de que desconhecia o meu fim, que não seria daquela maneira tão... tão pouco digna, de certa forma precisa de mais, certa de mais, perfeita de mais que até num quadro a tinham representado como se eu fosse mais do que este anónimo que agora escreve estas palavras no café onde ainda hoje de manhã, contente da vida por ter terminado mais um livro, que por saber do meu fim desenhado tão perfeitamente, já me não serve de nada. Eu que fumei tanto até hoje, eu próprio traçando o meu fim com um possível cancro dos pulmões ou da garganta ou da língua, impedido de percorrer esse caminho; eu que pensei colher uma flor ou comprar uma flor a uma florista que previamente matara a flor, ao colher essa flor que eu escolheria, para dar ao amor da minha vida; eu que tanto fugi para depois assumir e desejar construir uma relação, e que foi sendo construída e desejada e assumida de peito cheio, haveria de abdicar desse mesmo amor porque assim alguém decidiu ao pintar-me morto no dia de hoje, na Praça do Lagrido, bicado por pombos de peito inflamado pelos afectos da primavera? Eu... morto.
Tive de sair a correr da exposição, não podia mais, não podia mais estar ali e estava prestes a vomitar e por qualquer razão achei que não seria correcto despejar o meu descontentamento, a minha raiva, o meu transtorno ali no chão da minha tumba, no livro da minha vida. E eu que ainda antes de ter entrado na fundação tinha feito uma analogia entre os museus e os cemitérios, ao ponto a que cheguei. Saí a correr e mal pus o pé cá fora vomitei e depois... chorei. Chorei como há muito tempo não chorava, mas de tal maneira que fiquei esgotado de tanto choro, caindo de borco costas contra a parede e escorregando e fiquei envergonhado. Não sei dizer ao certo porque fiquei envergonhado, chorar nunca me envergonhou muito, embora sempre tenha preferido fazê-lo na maior das solidões. Acho que as pessoas não têm nada a ver com os meus choros, ou as minhas tristezas, assim como com a minha morte. O que me envergonhava, agora mais calmo enquanto escrevo, era o facto de minha morte ser tão pública, porque sendo minha não deveria ser o mais privada possível? É que, reparem, não digo isto só por dizer – quer dizer, sim, digo-o só por dizer porque quero evitar a minha morte de bicicleta, mas também porque sempre tive esta sensação – sempre que presenciei funerais ou velórios, ou vi fotografias de enterros ou aquelas que se vêem dos campos de concentração – não as dos montes indistintos de corpos mortos, dessas sempre tive vergonha pela humanidade – aquelas em que vários prisioneiros se encontram agarrados a uma rede, nesses olhares das pessoas, para além de mostrar alguma tristeza e indignação, sempre vi ou pressenti alguma vergonha. Vergonha de não poderem evitar uma fatalidade, vergonha por comungarem a ausência, vergonha pelo vazio que não podem preencher, vergonha por saberem que estão ou irão partilhar a sua própria morte e vergonha também por saber que, para além de todos os corpos que poderão estar juntos ou a acompanhar no velório ou no funeral, o que morre morre só, é só ele que morre, todos morrem mas cada um morre a sua morte e só. Quero dizer, eu não sei se morro para alguém que morre antes de mim. Não sei e seria muito incorrecto da minha parte extrapolar isso, como extrapolar uma vida depois da morte, porque nunca nenhum morto me falou depois da sua morte, é só o medo que faz as pessoas falarem e falarem e nunca se calarem nunca, como se elas próprias também tivessem vergonha do silêncio. Penso até, mais calmo ainda agora, que quando alguém diz a outra: para mim morreste ou para mim aquela pessoa é como se estivesse morta, é só por vergonha pelo que essa ou a outra pessoa fez, a pessoa que o diz não deseja de facto a outra morta, tem é vergonha e se a outra pessoa não existisse ou nunca antes tivesse existido seria melhor para ambos. Ou por exemplo, certos animais vão morrer longe afastando-se dos seus familiares, por assim dizer, para não envergonhar o resto do grupo pelo facto de já não poderem partilhar a sua vida, por assim dizer, digo eu. E quando as pessoas dizem: vai morrer longe, é porque as pessoas não querem estar ao pé de alguém que as envergonha. Por isso tive vergonha, vou morrer e a minha morte vai ser vista por tantas pessoas que nem sequer conheço, vou morrer sozinho ao pé de tanta gente, demasiado perto para o meu gosto.
Depois de limpar a minha cara e boca do choro e do vómito, cabisbaixo de vergonha e cansaço, lá fui para o café. Fui para o café porque necessitava de esclarecer as minhas ideias, pensar no que é que poderia esclarecer com tão pouco tempo, pensar, por exemplo, como distanciar a minha morte, como ganhar tempo. Arrancar os quadros estava fora de questão, não sei o que é que isso realmente influenciaria na minha morte, seria parvo e inconsequente, embora pudesse ainda, mesmo assim, ter motivos para rir pouco antes de morrer, recriando uma daquelas perseguições à charlot dentro da exposição – aquele corpo vadio sempre a ser escorraçado, a ser perseguido, por uma força que se sente envergonhada por aquele corpo não se enquadrar com o resto.
Pedi um café com a minha voz envergonhada, obrigando-me a mim próprio repetir o pedido três ou quatro vezes. Sentei-me e enrolei um cigarro e depois outro e mais outro, já que não morreria de cancro não fazia mal fumar tantos de seguida e obrigar-me a morrer de outra maneira que não aquela que estava representada parecia-me igualmente estúpida, do género vingança do chinês pequenino – era uma coisa que a minha mãe dizia sempre, quando eu ou algum dos meus irmãos, depois de fazer uma fita de criança com excesso de atenção materna, excedia a sua pieguice mimada e fazia mal a outro, ou partia uma coisa, ou dizia qualquer coisa inapropriada só para fazer mal; não sei porquê, mas sempre que a minha mãe dizia aquela frase lembrava-me do Bruce Lee, não era nada contra os chineses, simplesmente éramos pequenos e quando fazíamos fitas e choramingávamos franzíamos o sobrolho e cerrávamos os olhos.
Fui, portanto, bebendo o meu café e fumando o meu cigarro – agora apetecia-me dizer que tudo era meu, já não tendo a minha morte privada – e quando me vi de chávena vazia, e por que me queria deixar ficar ali sentado na esplanada do jardim, levantei-me e pedi qualquer coisa para beber, também já não fazia mal algum continuar a estragar o fígado. Aquela bebida foi-me desavergonhando golo a golo, lentamente, copo a copo. Até que dei por mim a relembrar, não no sentido de rever e fazer a revisão da minha vida num flash, uma vez que já o tinham feito previamente por mim e sem qualquer autorização, sem sequer pedirem direitos de autor, não. Relembrava o dia que conheci a minha companheira, essa mulher a quem me fui habituando suavemente, quase tranquilamente, que me foi ocupando grande parte dos meus pensamentos, privados e não partilhados como a minha morte, que me foi ajudando a descobrir o que chamam de o amor – e mesmo tendo a morte aqui à minha beira ainda não o sei definir – essa coisa que me impede de dormir descansado se estou só, que não me impede de fazer palhaçadas se assim me apetece, que me impede até de relembrar qualquer outra coisa até ter lembrado o suficiente, até o ter construído e reconstruído o suficiente para que o possa apagar e de novo começar, lembrando-me de vê-la sentada a uns passos de distância de mim neste mesmo café, dela se me dirigir e me perguntar se eu não era um tal de Benjamim Machado, pessoa que fui num conto que escrevi no meio de tanta coisa inventada; e eu lhe disse que não, que era uma mentira no conto para dizer a verdade do meu nome, o que era, portanto, uma mentira na verdade do conto, que o meu nome era Fernando Machado Silva, o que é definitivamente verdade mas mentira no conto e que por essa razão roubei o título de um livro de um poeta para lhe dizer que a amava sem saber.
Relembrava que tinha andado a tentar encenar a minha morte dentro da nossa relação, ou a morte dela, sendo um o assassino do outro, sendo sempre o homem o assassino e a mulher a assassinada, e buscando tempos que não são os nossos pelo puro prazer da imaginação, tempos de assassinos.
Relembrava que de uma estúpida associação de ideias, quando estava prestes a adormecer, me veio a brincadeira de inventar a confissão de um pires de café tão semelhante a este que faço cair de propósito só para o ver estilhaçar-se no chão.
Relembrava como de uma ideia de um escritor francês, que escreveu sobre o Jack o Estripador, cruzei com uma outra personagem fantástica que se tornava ela própria no assassino londrino e experimentava a sua técnica, muito defeituosamente, numa mulher que o salvara (ideia estúpida e romântica, digo eu agora mas não quando escrevia o conto) que acabaria por gerar uma criança que seria eu se tivesse nascido no século xix.
Relembrava como, para me desfazer de alguma filosofia deste século e de alguns textos de xvi, engendrei uma outra história sobre a paixão e o ciúme de um marinheiro que de longe e pela escrita toca e engravida a sua mulher e depois a mata, narrada por uma criança com vinte e oito anos no século xxi, que era eu, um pequeno monstro de quatrocentos e tal anos, um pequeno monstro que vai morrer publicamente.
Relembrava e ia pedindo e bebendo mais copos de amêndoa amarga e depois de whisky e que, de tanta lembrança, inesperadamente ia adiando a sua morte porque, buscando um pacote novo de mortalhas na sua mala, se deparou com os antigos mestres e com o seu caderno preto e decidiu relatar o seu dia, porque sim, porque alguma coisa tinha de ser dita daquele terrível e absurdo dia, porque já não escrevia há muito tempo por preguiça e o choque era demasiado forte para deixar passar impune, sem ser escrito e descrito, porque se sentia triste e só e abandonado e bêbedo e estava com uma raiva de morte ao mundo e por tudo e por nada e por inveja e porque sempre gostou de escrever e por teimosia e porque queria o seu amor de volta e porque não? E porque não, penso eu agora enquanto escrevo, se é isso que eu quero, porque não ir vê-la, porque não ir ter com ela, levar-lhe a flor prometida e uns ovos para o jantar...




Sem comentários: