quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Gottfried Benn - 2 poemas




RESTAURANTE

O sujeito lá do fundo pede mais uma cerveja,
para mim ainda bem, assim não preciso censurar-me
por também sorver uma nessa altura.
Pensa-se logo que se está contaminado,
eu li mesmo numa revista americana
que cada cigarro encurta a vida de trinta e seis minutos,
eu cá não acredito, possivelmente a indústria de coca-cola
ou uma fábrica de pastilha elástica estava por detrás do artigo.

Uma vida normal, uma morte normal
também não é nada. Também uma vida normal
leva a uma morte doente. Sobretudo a morte
não tem nada a ver com a saúde e a doença,
serve-se delas para os seus próprios fins.

O que é que você acha: a morte nada tem a ver com a doença?
Quero dizer: muitos adoecem sem morrer,
portanto aqui há qualquer coisa diferente,
um fragmento de dúvida,
um factor de incerteza,
a morte não está tão claramente delimitada,
também não tem foice,
observa, espreita do canto, refreia-se mesmo
e é musical numa outra melodia.


NÃO PODE SER LUTO

Nessa cama pequena, quase de criança, morreu a Droste
(pode ver-se no museu dela em Meersburgo),
neste sofá, Hölderlin, na torre, em casa de um marceneiro,
Rilke, George,lá foram em camas de hospital, na Suíça,
em Weimar os grandes olhos negros de Nietzsche
pousavam numa almofada branca
até ao último olhar -
tudo isso tralha velha agora, ou que se foi de vez,
indefinível, apagada
na ruína indolor e eterna.

Trazemos em nós sementes de todos os deuses,
o gene da morte e o gene do prazer -
quem os separou: as palavras e as coisas,
quem os misturou: tormentos e o lugar
em que se acabam, madeira com fiozinhos de lágrimas,
sede mesquinha de horas breves.

Não pode ser luto. Longe de mais, além de mais,
intocáveis de mais a cama e as lágrimas,
nem não, nem sim,
nascimento e dor física e crença,
uma ondulação, anónima, um deslizar,
algo de supraterreno, a fazer-se sentir no sono,
agitou cama e lágrimas -
trata de adormecer!

6.1.1956

in Gottfried Benn, 50 poemas, Lisboa, Relógio d'Água, col. Poesia, trad. Vasco Graça Moura, 1998: 71 e 117.

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