segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - o toque do marinheiro

VI

Minha mãe foi-se adaptando à nova e oculta vida. Era a mesma serva e empregada da minha tia-avó, mas sentia-se outra. Era definitivamente outra mulher. Não o sabia explicar porque nada mudou no seu dia-a-dia de ajudante de taberneira, cozinheira, mulher de limpezas, tratadora de animais, tudo o que havia para fazer na albergaria adoptiva. Movia-se com a mesma agilidade de antes, por entre mesas e bancos soltos e corridos. No fim de contas, ainda há pouco tinha chegado à maioridade. Contudo, não se tratava desse acrescento de anos que se devia a diferença.
Era outra mulher porque agora sabia-se de novo ligada a alguém. Quando perdera seus pais descobriu-se só, uma flor colhida e deixada num vaso recordando as suas raízes noutro sítio, e do segredo, do sentimento que não tinha comparação, viu-se novamente árvore entre árvores, com raízes a rebentar pela terra a dentro. Estava intimamente ligada a um homem através dos oceânos.
Sua conquistada tia, ganha por laços invisíveis, notava também uma diferença, mas explicava-a pela habituação ao serviço, à casa, à companhia diária que a permitia sorrir e dizer o que lhe ia na cabeça, ou, como dizíamos nós quando ainda acreditávamos de modo inquestionável, na alma. Por essa razão, por se sentir mais próxima dessa rapariga, aliviou-lhe do número de tarefas contratando uma outra mulher, que não terá qualquer papel nesta história senão o de permitir à minha futura mãe mais tempo para si própria. Também os homens frequentadores da albergaria, os ditos clientes habituais, a viam como outra, aceitando uns a condição de habituação, outros a da idade, vendo-a mais mulher que antes. Só que, se antes quase todos os homens brincavam e atiravam ditos eróticos a uma menina nova na casa, abusando da ignorância e da ingenuidade, agora, aqueles que se atreviam a antigos jogos sedutores, eram obrigados a comer, beber e calar com a prontidão das respostas de minha mãe e palmadas em mãos intrometidas. Uma nova mulher tinha nascido.
Decerto parecer-vos-á estranho o que agora vos direi, mas minha mãe teve uma educação privilegiada para os tempos que viviam, comparável apenas com as filhas dos homens e mulheres da corte, e nem todas. Quando ainda criança, dando os seus primeiros passos, meu desconhecido avô, criado e educado entre membros do clero, aprendeu a arte da leitura e escrita e, ao abrigo dos olhos rurais da minha incógnita avó, que preferia um corpo de cabeça e mãos lapidados para o trabalho doméstico e do campo, passou os seus conhecimentos para a filha. Era de facto um privilégio, embora muito pouco dado a uso desde que minha mãe trabalhava. Contudo, o aparecimento daquela nova mulher, que como já tinha dito não representa qualquer papel relevante nesta história, na albergaria da minha tia, concedeu àquela outra novíssima mulher, minha mãe, tempo para retomar a leitura e escrita.
Como não recebia qualquer carta de meu pai, pensando que ele não faltava à promessa mas antes, ao contrário dela, não ter o tempo desejado para lhe endereçar o seu amor de longínquas partes, decidiu por sua vez ser ela a escrever. Todavia desconhecia para onde enviar as suas epístolas, as suas memórias de amor nunca vividas em partilha. Assim, num dia livre de trabalho que agora tinha a seu dispor, decidiu procurar um bom livro em branco onde pudesse apontar as coisas que queria e necessitava dizer ao seu esposo. Naquele tempo um objecto como um livro em branco valia ouro – à semelhança dos dias que correm. Conhecendo as possíveis dificuldades de o arranjar para si, foi ter com o muito agradecido padre que os casou. Lá lhe explicou o seu desejo, as suas razões, que nada daquilo seria mal visto aos olhos de Deus, retorquindo-lhe que era um outro modo de tecer tapetes na dura espera pelo seu companheiro, qual Penélope afastando os pretendentes enquanto aguarda o retorno de Ulisses. O padre, embora torcendo o nariz com essa comparação e replicando se ela se julgava uma renascida Safo, acabou por lhe arranjar o dito livro em branco, que por acaso até tinha um a mais entre os seus, e pediu-lhe que de uma vez por todas o deixassem em paz e despachassem a história.
De novo em casa, depois de jantar, encaminhou-se para o seu quarto. Sentada num banco improvisado e depositando o livro aberto sobre uma camilha, deu início à sua escrita de amor. Mal sabendo que o seu esposo o mesmo fazia, de dia para dia, também as páginas daquele livro, um volume grande e grosso, se foram preenchendo cada vez mais. Quando terminava fechava o livro e guardava-o dentro de uma gaveta secreta num baú que trouxera com o seu burro. Apagava a vela e adormecia pensando nele, sonhando com o momento da sua chegada para lhe ler o seu coração.

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