quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Benjamim Machado

VIII

Bom…uma coisa que não podemos esquecer quanto a Benjamim Machado é a sua capacidade de distracção. Isto não quer dizer que ele estava a pensar a todo o momento, não. Por vezes distraía-se com uma simples folha que deslizava no chão soprada pelo vento, uma formiga que passava arrastando uma migalha, uma asa de mosca, um grãozinho de qualquer coisa; e se ele se distraía com uma coisita de nada, se ele se alheava com uma nica que passasse ao lado ou que de repente lhe brotava na cabeça, imaginem só o ponto em que estava esse seu defeito ou qualidade (porque às vezes é de facto uma qualidade, a distracção) depois de a musa lhe ter concedido o desejo.
É verdade, Benjamim Machado ficou um pouco mais trolaró do que antes era, disso não há dúvida. E é verdade também que, com tanta escrita, com tanta ida e vinda à cidade para comprar papel, canetas, colóquios, entrevistas, eu sei lá mais o quê (coisas que ele tentava evitar o mais possível), ele descurava algumas das coisas principais numa casa. Queremos dizer, esquecia-se por exemplo de arrumar a casa, deixando o lixo e o pó acumular-se pelos cantos das diversas divisões, deixava o frigorífico e a despensa esvaziar-se até restarem algumas migalhas, um ovito, uma maçã, ou mesmo nada de nada.
Pois é, Benjamim Machado também se esqueceu de uma coisa essencial para o gesto fatal que preparou para si. Inspirou e inalou o gás que saía do fogão chegando ao ponto de adormecer, mas não foi o suficiente para se matar porque o gás, o esquentador já o tinha avisado desligando-se uma ou outra vez quando tomava banho, acabou pouco depois de fechar os olhos.
Foi então naquele limbo entre vigília e letargia, entre vida consciente e sonho, naquele espaço entre a realidade que vemos e aquela que construímos de olhos fechados quando dormimos, que alguém entrou na cozinha sem ele dar por isso. Piscando os olhos enublados, abanando a cabeça para desviar a névoa que se formara bem à sua frente, conseguiu entrever uma figura feminina que lhe foi desenlaçando a corda e deixando deslizá-la pelo corpo. Depois puxou de uma cadeira, alinhavou o vestido para que não se amarrotasse e sentou-se em frente de Benjamim Machado.
“Não achas que deverias ter vergonha nessa cara barbada, meu palerma? Para que é que foi isso? Onde é que querias chegar tentando te matar?”
“Só (tosse, tosse), só (tosse, bocejo), só te queria ver, e (tosse) acho que consegui finalmente que (tosse, tosse, tosse), que (tosse, tosse, tosse, tosse, tos…)”
“Que?”
“Que (tosse, tosse, tos…)”
“Que palerma”
“Sim (tosse), não (tosse), que…”
“Viesse e me falasses e me tocasses e me cheirasses e me visses e me dissesses coisas que me fariam apaixonar por ti, que caísse totalmente por ti, que ficasse para sempre ao pé de ti e não te largasse nunca mais, que te fizesse a papinha, a caminha, a barbinha, te cortasse as unhas dos pés e das mãos, te escovasse os dentes e o cabelo, que me risse das tuas piadas sem piada, que chorasse contigo nas tuas parvas tristezas sem razão, que te trouxesse o xarope para a tosse, a aspirina para a dor de cabeça, a pomada para as dores nos músculos e nos ossos, que te lavasse e passasse a roupa a ferro e te vestisse, que te acordasse todos os dias com um sorriso estampado na cara mesmo quando não estou para aí virada, te massajasse o corpo e te passasse bálsamo ou unguento refrescante e relaxante, que seja a tua mamã meu bebé? O bebé não consegue viver sem a mamã? O bebé fez cocó e chichi nas fraldas? O bebé portou-se mal, quer levar tautau?”
“Não é isso”
“Então o quê?”
“Não percebes”
“Mas não percebo o quê? Achas que eu não percebo nada, é? Achas-te muito inteligente agora, é isso? Esqueces-te que fui eu, hã, fui eu que te dei tudo de mão beijada, a ti, que andavas por aí às turras sem saber o que fazer, ai eu não consigo buuu, eu nunca vou conseguir buuu, estão todos contra mim buuu, todos me querem mal buuu. Nunca, mas nunca, ninguém te quis mal e a única coisa que te fiz foi pôr-te a pensar em nada, percebes, o teu mal era pensar demais e era isso que fazia com que tu não escrevesses nada de nada. Ficavas ali às voltas e às voltas das palavras e das frases. Torturava-las, embrulhava-las, fazias labirintos que nem sequer os percorrias e como disse o cego argentino, os labirintos são construídos para serem percorridos não para aprisionarem. Era isso que tu fazias, martirizavas a tua escrita e eu dei-te um empurrãozito. Só isso… percebes… só isso”
“Percebo, percebi à uns meses atrás e percebo-o agora pela boca. A tua, a minha. Eu só te quero aqui. Não precisas de fazer nada. Só quero que fiques aqui e me ouças. Ouve…”, nisto, subitamente, Benjamim Machado calou-se. Daquilo que tantas vezes pensou dizer-lhe, nem uma palavra, nem um sopro conseguiu proferir ou deixar escapar.
Sentados frente a frente, com a mesa a separá-los, ela esperava por ouvir o que Benjamim lhe queria tanto dizer, mas este, boquiaberto, ficava-se pelo olhar. Nos seus olhos, a pouco e pouco, foi-lhe surgindo um rumor, uma leve tremura, uma concentração maior de humidade a que se acrescentava uma outra e outra mais, tanta humidade que acabou por transbordar. Primeiro fazendo pesar as pestanas, depois obrigando-o a fechar as pálpebras uma ou outra vez, e por fim cerrá-las completamente, apenas para perceber que somente fechá-las não impediam as lágrimas de continuar a cair, pelo que teve de recorrer a ambas as mãos sobre a cara para aí as encerrar. As lágrimas foram percorrendo os espaços entre os dedos, acumulando-se por baixo das unhas, nos corredores das impressões, pelas bochechas, pelo queixo barbado. Eram tantas que acabaram por entrar nos olhos em vez de saírem, afogando o seu corpo por dentro, obrigando-o a curvar-se sobre o seu corpo em soluços.
A mulher não sabia o que fazer. Não estava à espera deste acontecimento inesperado. Quando chegou, quando apareceu, vinha apenas preparada para desancar Benjamim Machado. Não aceitava esta espécie de revolta ou traição, esta recusa contra aquilo que oferecera e que Benjamim tanto desejara. O que quereria ele agora? Mas ela própria não suportava ficar ali especada. Impacientava-se. Queria ir-se embora, queria deixá-lo ali na sua própria miséria, miséria que ele mesmo infligira a si depois de tudo o que ela fez, deu de bom grado, porque o amava. Sim, no fundo era isso, apercebeu-se ela, no fundo amava-o mais do que a qualquer outro antes, melhor, pela primeira vez amava. Essa era a razão para aparecer de novo a ele, porque a mais nenhum outro voltara depois de ter concedido o que pediam. O que era oferecido consumia-se por si e não se renovava e ela não reaparecia, enquanto que a Benjamim Machado, enquanto que por Benjamim Machado voltou. Traíra-se a si também.
Levantou-se da cadeira, contornou a mesa da cozinha com o seu longo vestido a roçagar pelo chão, aproximou-se da cadeira onde Benjamim ainda se encontrava a soluçar e foi se encostando lentamente para não o assustar. Benjamim não sabia o que estava a acontecer, já não se lembrava sequer que a mulher ali estava, tão afogado no seu choro. Apenas sentiu uma alteração na temperatura, uma coisa mais quente que o envolvia numa espécie de abraço ao redor do seu corpo curvado e que o inclinava de encontro a uma massa macia, mole, terna, quente, que se erguia e baixava, que o acalmava, que o descansava em silêncio. Começou por escutar uma respiração, que acompanhou com a sua. Com essa perseguição entrou mais para dentro e formaram-se ainda mais dentro dois batimentos de coração. E da atenção que lhe dedicou somente um permaneceu a retumbar, a repercutir ritmicamente assegurando-lhe o sonho da sua solidão.
Não estavam dois corpos naquela cozinha mas apenas um, o dele, e o sonho feliz do corpo dela, a sua presença sonhada, imaginada, desejada. Aquela respiração que escutara atentamente aproximou-se das suas mãos que ainda cobriam o seu rosto. Aquela respiração tornou-se mais quente ao mesmo tempo que as suas mãos abriam e impulsionavam os seus braços em resposta ao abraço que ainda sentia. Aquela respiração ia e vinha mas sempre se aproximando da sua própria. E aquela respiração acabou por se juntar à sua, acrescentando ao gosto salgado das lágrimas um outro, indecifrável.
Enquanto um dos abraços se afirmava, o outro aliviava a pressão e buscava outras partes do corpo. Uma mão solta rastejava subindo uma barriga, umas costelas, um peito, um colo, um pescoço, um rosto, para encontrar o seu pouso definitivo de novo no pescoço. Como se tivesse vida própria, a mão começou a abraçar o que segurava cada vez mais e mais e mais. Só que onde poderíamos esperar alguma resposta, alguma contestação, algum combate, alguma tentativa de libertação, nada. Quanto mais a mão apertava, mais o encontro das bocas e das respirações se intensificava. Até que cessou por completo e Benjamim Machado sentiu uma gota, talvez uma lágrima, que lhe caiu no rosto vindo de um lugar ainda mais acima que os seus olhos e o corpo da mulher escorregou-se-lhe por entre o único braço que a envolvia.

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