quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Benjamim Machado

VII

Benjamim Machado largou tudo o que estava a fazer, abriu a porta do pátio e dirigiu-se à casa de um dos seus vizinhos, um que, com algumas tábuas e uma rede de nylon verde, construiu uma pequena oficina onde passava as horas da manhã a montar e desmontar o motor do seu carro. Bateu na porta e chamou “Oh da casa” e o Senhor Oh apareceu dando os “bons dias, vizinho”. Benjamim Machado, inventando uns arranjos quaisquer na sua casa, ou explicando o trabalho complicado para levar uns caixotes para o sótão, já que não tinha um escadote e sozinho não conseguiria fazer nada, perguntou se o Sr. Oh tinha uma corda grande.
“Mas claro que sim, vizinho, traga-me quando já não precisar dela.”
“Obrigado Sr. Oh, fico-lhe muito agradecido. Amanhã ou depois trago-lha tal como ma emprestou”.
“Não se incomode vizinho, não se incomode”.
“Bom, obrigado, outra vez, obrigado Sr. Oh.”
“Ora essa, não tem de quê”.
Virou costas e retornou a casa sem muita pressa, porque também não queria dar mostras de que alguma coisa se passava dentro da sua cabeça. Mas também não quis ir demasiadamente nas calmas, porque isso seria muito suspeito. Claro que os vizinhos sabiam que ele era uma pessoa bastante calma, só que demais também não, calma a mais trás água no bico e com uma corda então, huuummm, mais parece calma de carrasco. E ainda por cima sabia que o Sr. Oh tinha ficado empoleirado na porta do seu pátio a pensar se Benjamim lhe teria mentido ou dito a verdade, que isto nos escritores e poetas nunca se sabe, isto é, nunca se sabe se eles estão num ou noutro lado ou no meio, que é o da ficção por assim dizer.
Chegado à porta do seu pátio, corda ao ombro, enquanto empurrava a porta virou a sua cabeça para o lado esquerdo e, confirmando o que afinal já sabia, lá estava o Sr. Oh fingindo que não reparava nele. E digo fingindo porque Benjamim conseguiu ainda captar os ecos da virada repentina da cabeça do Sr. Oh. Ficou parado com a porta semiaberta ainda alguns instantes e, como também já estava à espera, não demorou muito até que o Sr. Oh revirou a cabeça para o seu lado esquerdo e foi apanhado com a boca na botija, como se costuma dizer.
“Oh Sr. Oh” pensou Benjamim sorrindo como que repreendendo o seu vizinho. Este respondeu de modo envergonhado e como um caracol meteu a cabeça para dentro do pátio da sua casa. Empurrando a porta até ao fim, Benjamim foi entrando cada vez mais para dentro da sua própria. Passando a porta da marquise avançou para a cozinha e depositou a corda em cima de uma mesa. De uma gaveta dessa mesa tirou um enorme rolo de fita-cola, daquelas castanhas que costuma selar caixotes e caixas, e igualmente a colocou em cima da mesa, depois serviu os pratos dos gatos com comida e água ambos quase a transbordar e fechou a porta da marquise.
Foi buscar a fita-cola e começou a dar serviço ao enorme rolo, a fazer o que lhe competia. Selou a porta da marquise, selou por cima, por baixo e dos lados a porta da rua, as janelas, toda a maior ou menor frincha onde o ar pudesse entrar ou sair foi hermeticamente fitacolada. Dirigiu-se então para a cozinha, sentou-se numa cadeira, serviu-se de um café e quando ia pegar na chávena, por incrível que pareça, sem sequer lhe ter tocado, a chávena desequilibrou-se em cima do pires e caiu no chão espalhando o café por todo o lado. O estranho é que, tanto a chávena como o prato, nem estavam na beira da mesa e mesmo assim, do nada, a chávena caiu. “Bom, não interessa, já bebi café que chegasse por hoje, se eu beber mais nem consigo adormecer”. Com esta decisão, Benjamim Machado não podia fazer mais nada do que seguir com o plano que lhe tinha ocorrido há momentos.
Pegou na corda e começou enrolá-la à volta do seu corpo e da cadeira onde se encontrava sentado. Parou a meio do processo de autoencordoamento para acender um bico do fogão para de seguida soprar e apagar a chama que se formara, recomeçando de imediato o seu aprisionamento. Servindo-se da boca deu os últimos nós à volta das mãos e apertou bem, tanto mas tanto que por pouco partia um ou dois dentes e ficou outro par a abanar.
Se quisesse poderia desatar os nós facilmente, uma vez que foi ele mesmo que os fez, mas estava decidido a pôr a sua própria vida em risco esperando com isso que a musa aparecesse, porque no fundo ela apareceu num momento de desespero, por assim dizer, quando Benjamim desesperado ultimou o seu desejo de ser escritor para o fundo do seu corpo. Ora, se foi isso que motivou a sua presença face a Benjamim, um outro acto desesperado chamaria por ela uma nova vez e depois podia dizer-lhe tudo o que tinha para dizer, tudo o que sempre quis dizer-lhe, tudo o que sempre sonhou dizer-lhe e, quem sabe, beijá-la e convencê-la a ficar, a permanecer com ele. “Quem sabe…” e os olhos de Benjamim começaram a piscar e a amolecer, a sua cozinha lentamente foi-se cobrindo de azul e um torpor invadindo o seu corpo.

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