terça-feira, 11 de janeiro de 2011

o meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - O crime do prato amado

And she cried mercy, have mercy on me, and i told her to get down on her knees
Nick Cave


Matei-a. Tinha de acontecer e não deixei escapar aquela oportunidade. Tinha de matá-la. Confesso. Confesso-o agora porque não suportava mais. O peso na consciência, se eu puder chamar de peso esta imagem constante que me atravessa do cérebro aos olhos, era já maior do que alguma vez ela o foi na minha vida. E é bom que me ouçam, que arranjem o tempo para me ouvir, que se sentem e se sintam confortáveis. Calcem as vossas pantufas se quiserem, preparem uma bebida forte num copo resistente, que não se vos parta nas mãos. Bebam-no de um só trago e reencham-no, façam tilintar os cubos de gelo. Por dois ou três segundos observem a água a misturar-se com o álcool, a formar aquela nuvem espessa de açúcar. Daqui a pouco despacham-me e o que resta? Apenas umas poucas palavras. Imagino-vos até a pousarem o copo no chão, a levarem as vossas mãos húmidas à cara, colando o fresco das palmas à pele nervosa e impaciente das vossas faces. De certeza devem estar a pensar: terá ele realmente consciência? alguém que matou outra terá consciência? Claro que sim. Eu tinha plena consciência que já não aguentava mais aquelas suas mentiras constantes. O corpo dela por cima do meu nas noites frias.
Sim, houve um tempo em que era só isso que eu queria. Numa mesa, numa cadeira, no chão, na relva. Ah, não sonham sequer o prazer que era aquilo. Eu, num espaço, ela, no outro. E eu sabia que ela estava no outro, ali mesmo ao lado. Só tinha de esperar, mais tarde ou mais cedo, ela viria ter comigo balouçando o seu corpo frágil, a seduzir-me no seu balançar. Eu, preguiçoso, ficava deitado. Ela, imponente, colocava-se mesmo por cima. Encaixávamo-nos tão bem. Depois era só deleitar-me com aquela onda morna, aquele fluxo de calor, dela para mim, de mim para ela. Éramos assim como uma máquina. Ela produzia e eu absorvia, parávamos, afastávamo-nos, juntávamo-nos, encaixávamo-nos e ela produzia e eu absorvia. Assim, tal e qual, noites e dias nisto. Então o que é que aconteceu? Quantos não dariam por uma vida dessas. Porque a terá ele morto? Eu sei, lá estão vocês à procura de razões, de argumentos lógicos que justifiquem uma acção. E depois semi-boquiabertos encostam-se às costas do sofá ou da cadeira abanando a cabeça, cotovelos colados aos joelhos. Não há razão válida. Haverá alguma de todo? Para qualquer coisa? Digam-me! A verdade é que ela, numa noite fria como a de hoje, foi ter com outro, escolheu outro em vez de mim, foi maquinar-se com outro. Eu perguntei-lhe mais tarde, quando surgiu a oportunidade, por que o fez, por que fizeste isso? e ela só me disse que aquilo não queria dizer nada, ela nem sequer tinha culpa no cartório, que foi um impulso indomável, insubmisso, irresistível, incontrolado, como se uma mão a guiasse, a conduzisse para cima do outro.
Fiquei desolado, de rastos, mesmo. Eu não parecia eu próprio. Dormi muito mal naquela noite. Melhor, nem dormi. Sempre a olhar pela janela. Mas resignei-me. E por “magia”, como aquela que a levou para cima de outro, no outro dia fui eu o escolhido do seu peso. Foi a última, pelo menos durante alguns meses. Porque depois dessa, lá foi ela para outro e outro e outro. Não suportei aquilo, não daquela maneira sem me deixar tempo para respirar. Conseguem imaginar o que sentia? Conseguem? As noites colado à janela à espera que o dia nascesse, como se com um novo dia ela viesse ter logo logo comigo, que saltasse, que se encaixasse como das outras vezes. Mas, dias, tardes, noites, nunca mais foi a mesma coisa. Nunca, nunca mais. Eu… eu arrastava-me. O meu coração ia se partindo aos bocadinhos, dilacerando-se sempre que a via naquele jogo de fluxos que pertencia só a nós. A nós os dois. Bom… não quero que simpatizem comigo, não há motivos para agora começarem a perdoar-me. A minha justiça, o meu senso de justiça talvez não seja exactamente igual ao vosso. E mesmo se agora encontrem razões, nenhuma é válida. A minha palavra não vale nada.
Podem imaginar o estado da minha cabeça por aquela altura, noites inteiras sem dormir e depois ser atormentado por aquelas visões, interminavelmente. Era um inferno. Eu não era assim tão forte para ser castigado daquela maneira. Porquê eu, porquê a mim? Perguntava-me muitas vezes esta questão. Mas, não valia de nada. A verdade… a verdade é que eu estava partido por dentro, rachado, faltavam-me lascas. Cada vez que a via naquilo, eu era menos um pedaço de mim. O pior é que… o pior é que ela… ela ficava sempre a olhar para mim, a dizer com os seus olhos, eu não tenho a culpa, acredita, eu não tenho a culpa, eu não, não, acredita, a culpa não é minha. Então era de quem? Hã? De quem? Minha? Era minha? Era por ser preguiçoso? Hã? E os que estiveram debaixo de ti? A preguiça deles não foi igual à minha? Hã? Não olhes para mim! Dizia-lhe eu com os meus olhos, não olhes para mim, não, não olhes… por favor. Acho que quando me saiu aquele por favor, foi como aquela última gota que ninguém está à espera que vá transbordar e nos molha completamente. Foi determinante. Decidi-me: contra tudo e todos.
Nessa noite, uma vez mais pregado à janela, comecei a planear o meu crime. Tinha de ser meticuloso, não poderia deixar escapar nada de nada que mais tarde me incriminasse. Não é difícil pensarmos um crime, sabem? Mais difícil é sobrevivermos sem qualquer crime na nossa imaginação. Ah, toquei-te num ponto fraco não foi? É por isso que desviaste o olhar para o copo, bebeste-o e foste enchê-lo outra vez. Não faz mal. Não faz mal nenhum. Se te dignaste a ouvir-me é porque o crime já habitava em ti. Mas também não te vás embora. Fica. A minha narrativa está quase terminada. Depois podes ir lavar as mãozinhas e ir ter com a tua companheira ou companheiro, fazer o que fazes para também não te pesar tanto na cabeça amanhã, não é? Bom… onde é que eu ia? Pois, pois, pois. Tive apenas de esperar uns dias. Ela veio ter comigo. Eu fingia que não se passava nada, ali, deitado na mesa da marquise, a contar quantas lascas ela me cinzelou do coração. Mal a vi, já tão próxima, por pouco faltaria ao prometido. Eu dizia para mim que já não a amava. Esperei, esperei mais um bocadinho. Quando ela se pôs em cima de mim, eu não a deixei assentar completamente, não permiti aquele encaixe que eu tanto gostava. Estremeci, sem saber se era de nervoso, se de medo de ser apanhado, se por ela. Respirei fundo. Aproveitei o desnível entre nós, aquele encaixe interrompido e desta vez foi a minha vez de balançar. Balancei uma duas três e ela caiu da mesa, estatelando-se no chão, partindo-se como já o meu coração estava. Lá de baixo ainda me olhou fixamente, dizia-me, penso eu, dizia-me que… que ainda me amava, que me perdoava porque sabia que nenhum de nós era culpado. Não fui eu que planeei o crime, mas tinha sido conduzido a planeá-lo, a cometê-lo como ela tinha sido empurrada para cima de outros. Ela sabia. Ela foi levada e nunca mais a vi.
Durante algum tempo, senti-me bastante melhor. Conseguia dormir. Mas comecei cada vez mais a passar os meus dias dentro de casa. Também eu estava partido. Ou talvez fosse a idade, não sei. E voltou o peso. Com outro nome. Com uma forma completamente desconhecida para mim. Eu comecei a sentir a sua falta, falta daquele corpo frágil de porcelana por cima de mim. A juventude que tinha reconquistado foi-se perdendo. Um bocado aqui, outro ali. Quase que não me reconhecia quando a janela me conseguia reflectir. Eu arrastava-me, e em cada arrasto mais um bocado de mim se pelava. A saudade daquele amor agarrou-se-me feito lepra. Até que hoje, senti um toque nas minhas costas e caí da mesa da marquise. Exactamente como ela caiu. E tal como lhe fizeram, também a mim me trouxeram para aqui.
Retiro o que disse no início.
O peso dela é maior do que o do crime.
Não te dês ao trabalho de me colares de volta. Não quero. Nem sei se devias depois de me teres ouvido tão atentamente.

5 comentários:

André C. disse...

Mais um texto admirável. Tal como estou habituado a ler por estes lados.

fernando machado silva disse...

é pá, muito obrigado! só espero não vir a desiludir, a ti e a todos os leitores deste blog.

um grande abraço.

Gonçalo disse...

Tenho medo de dizer que adorei, Fernando :)

fernando machado silva disse...

se fores o gonçalo que estou a pensar, respondo isto: tenho medo de te dizer que te estás a tornar um leitor! (eheheh) como eu me tornei num fã do "assassin's creed".

abraço

Gonçalo disse...

Ya, estamos quites... :D