sábado, 29 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Benjamim Machado

III

Feito doido Benjamim correu de uma ponta a outra a praça. Não prestava qualquer atenção a quem passeava, afugentava os pombos, punha os cães a ladrar, provocava quedas com encontrões, assustava todas as mulheres e raparigas agarrando-lhes pelo braço fazendo-as rodopiar pelos calcanhares para o enfrentarem, para lhes ver a cara e nem se desculpava pelo seu comportamento. Estava transtornado. Nunca ninguém lhe tinha prestado atenção daquela maneira desprendida, daquela maneira desinteressada, para não falar da estranha conversa que tinham tido. O que é que ela queria dizer com tudo aquilo, como é que ela o poderia conhecer se nunca se tinham visto? Seria ela uma espiã, andaria ela escondida entre as ervas no campo observando-o diariamente, quereria ela passar-se por Mefistófeles, o que era isso de ela lhe conceder um desejo, de muitos já a terem desejado e ela se ter entregue, seria alguma prostituta? Não, não seria uma prostituta, uma mulher da rua, nem essas se dirigiam a Benjamim Machado. E como poderia ela desaparecer assim tão rapidamente, depois de lhe ter dito que ele a amaria como nunca tinha amado ninguém. É preciso ter muita lata.
Benjamim não sabia o que fazer. Estava cansado, transtornado, nervoso, confundido. O seu coração palpitava, corria dentro do seu peito. Os seus olhos percorriam todas as caras, as ruas, as travessas, as esquinas, as sombras. Ela não estava em lado algum. Sentado num degrau do passeio debaixo de um dos arcos Benjamim tentava recuperar o fôlego, acalmar as doidas batidas do seu coração, apagar da sua cabeça aquelas palavras e tentar apresentar o mais nítido que lhe fosse possível a imagem daquela mulher, mas ela estava desfocada, o espelho estava gorduroso, o corpo dela em contraluz. “Espera, espera por mim”, dizia entre dentes para si próprio, “espera, não fujas”, mas ela tinha-lhe escapado, sabia-se lá onde ela poderia estar agora.
Pensou então Benjamim que, como ela também bebeu no restaurante talvez também bebesse noutros lugares. Por isso ele, Benjamim, percorriria todos os bares da cidade, procurá-la-ia na contraluz de todas as mulheres que se encontrassem nos bares da cidade, vê-la-ia em todos os espelhos mal lavados e uma vez vista, definida no frente a frente, tentaria perceber o que ela queria dizer com aquilo.
E assim fez Benjamim Machado. Um a um, foi entrando em todos os bares da cidade. Colocava-se, onde lhe era possível, de frente para as luzes e para os espelhos enquanto bebia qualquer coisa. Ficava a ver os corpos a delinearem-se com uma aura de luz à volta, tentava perceber nos gestos e nos feitios distorcidos dos espelhos aquela mulher, fechava os olhos e por dentro da música procurava ouvir a voz dela. Mas, claro, depois de alguns bares não só todas as mulheres, como todos os homens e ele próprio, eram imprecisos, desfocados, pouco definidos, grosseiros. “Perdi-a, perdi-a para sempre e nunca a tive, nunca a vi, mesmo tendo estado a poucos centímetros dela, nem o seu cheiro lhe apanhei. Perdi-a”.
Cambaleante e cabisbaixo, tentando manter-se direito, apoiando-se uma vez ou outra numa parede, numa coluna, e sempre olhando para o chão, Benjamim dirigiu-se para a Praça do Lagrido. Amanhecia. Desatrelou a sua querida e adorada bicicleta e partiu equilibrando-se sabe-se lá como. Quase não havia carros na estrada. Varriam-se e lavavam-se as ruas, regavam-se os jardins, ia-se acordando, o dia estava cinzento e as folhas despediam-se do orvalho. Não lhe pareceu longa a viagem, mas o Sol conseguiu subir mais rápido do que a chegada de Benjamim a casa. Os gatos já o esperavam para o pequeno-almoço miando quando o viram chegar, correndo pelos telhados vizinhos e das ervas do campo.
Deitou-se na cama mal se despindo e adormeceu perdido nos lençóis.

Sem comentários: