terça-feira, 25 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Uma cereja em Setembro

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Quando acordei estava pendurada no ramo mais alto da cerejeira com a renda de bilros à volta do meu pescoço, sem roupa. Morri num dia de inverno de mil oitocentos e setenta e quatro de nosso senhor. Pelo menos para ele estou morta. Na verdade, não sei como sobrevivi, mas estou aqui para te contar a história.
Do alto da cerejeira eu parecia um pedaço de carne num açougue, enrolada na minha renda, com bocados de pele e carne ao dependuro. Olhando para baixo, era afinal essa a única forma de posicionar a cabeça já que não conseguia de todo levantá-la, via o meu corpo por inteiro. Um pedaço da parte interior da minha coxa direita estava segura apenas por um pequeno fiapo de músculo. Conseguia ver até ao osso. Um dos meus pés estava completamente virado do avesso, para lá daquilo que eu julgava possível numa bailarina. No meu sexo encontrava-se ainda o espeto, acho que era aquilo que me mantinha direita e presa à árvore. Felizmente não me partiu mais nenhum dedo. Nem sei o que faria sem poder voltar a fazer a minha renda e a tricotar. De vez em vez, quando não ouvia nenhuma onda enrolar-se no areal, com a minha restante orelha e ouvido percebia um gotejar, um plic plic que parecia cair do espeto. Sentia um cheiro, vá lá, já consigo cheirar outra vez, que me lembrava as festas da matança do porco. Não posso acreditar, não posso, ele queimou-me o sexo, ele queimou-me o sexo, ele…
De tanto fazer e desfazer a renda sempre com o mesmo fio, este haveria de ceder um dia. E assim foi. Do alto da cerejeira caiu este fruto de Deus que aqui vês. Quando encontrei o chão uma vez mais, o espeto quebrou-se ao meio, parte para fora, parte para dentro. Um dos fios rompeu-se. Sorte tive eu de não ter sido nenhum dos outros que sustinham os pedaços da minha carne, porque não somos mais nada do que isso. Pedaços de carne que a qualquer momento se desprendem de um pedaço maior. Caímos uma vez vindos do céu, do Senhor e uma vez caídos só paramos debaixo do chão. Eu, pelo contrário, tive a oportunidade de cair duas vezes, uma do Senhor através da minha mãe, outra da cerejeira através de Maldoror e a terra ainda há-de esperar mais um pouco.
Já no chão, naquela terra, naquela areia, consegui arrastar-me para casa, para as traseiras da casa onde estava a tina onde nos banhávamos. Deve ter chovido naquela noite, porque a tina estava cheia de água. Deixei-me mergulhar lá para dentro. A água estava fria. Aliviou-me um bocado, mas por pouco não me afogava. Não sei o que me deu, mas comecei a rir-me, um afogado afogar-me. Calmamente, quase docemente fui-me lavando e fui cantando:

“a tinta sua na tina
duas tintas
duas santas nuas
suadas na tina com tinta
santa tinta
santa nua na tina
na quinta
a santa sua
nua de tinta”

Deitada dentro de água empurrei o meu corpo para trás com as mãos apoiadas nos lados e pendi a cabeça para trás. Com cuidado busquei cada uma das minhas pernas e coloquei-as para fora da tina pelos jarretes. Fechei os olhos. Passou uma brisa pela minha cara e umas folhas foram-se colar a uma bochecha. Com a mão que ficou impune, mergulhei na água e nadei até ao sexo. Cerrei os olhos. Não te quero aqui. Eu é que renasci, renasci depois daquele banho. Saí da tina, enrolei-me num lençol que tinha ficado a secar, nem sequer me importava que estivesse tão húmido quanto eu. Eu queria tapar-me. Não queria ver-me. Não queria ver-me mais, nunca mais. Se pudesse, se tivesse forças para tal, cegava-me com aquele espeto. Mas não, eu não lhe daria esse prazer. Não morri. Ainda estou viva Maldoror. Entrei dentro de casa, trepei as escadas, eu era o animal de mim própria. Estendi-me na cama e adormeci.

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