segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

IX

No primeiro dia de Inverno, encontrávamo-nos sentados na sala à beira da salamandra falando e olhando um para o outro. E dei de caras, não sei por que razão, com o livro que comprei àquele livreiro no beco ao lado da botica, no dia seguinte à violenta tempestade.
“Quero ler-te uma coisa que comprei no primeiro dia que te levantaste a seguir ao teu aparecimento.”
“Claro que sim, lê. Deixa-me só pôr mais lenha, que esta está quase a morrer. Qual é o nome?”
“Poesias.”
“Não conheço. E o autor?”
“É de um conde. Isidore Ducasse, conde de Lautréamont.”
“…”
“O que foi?”
“Nada, nada. Uma dor de uma ferida que ainda não sarou de todo.”
“Bom, vou começar.”
“Sim, sim.”
Abri o livro com a maior delicadeza possível. Apreciei a textura das folhas, o desenho das letras demoradamente. Ele olhava-me carinhosamente com os seus olhos azuis, sorrindo-me com os seus pés de galinha. Respondi-lhe escondendo a cara por trás do livro. Talvez não o tivesse feito. Quem me dera não o ter feito. Comecei a ler o livro sem tentar dar qualquer expressão ao que dizia, embora estivesse tão bem escrito que me fui deixando embalar pela sua melodia, deixando a minha voz ser guiada pelo que era dito, acentuando aqui e ali algumas palavras, algumas frases. De vez em quando ouvia-o suspirar e o cric cric da madeira da sua cadeira e da que nos dava conforto. Realmente estava a ser um belo serão, até os seus pés se prenderam nos meus fazendo-me cócegas. Dos meus passou para os pés do banco puxando-nos para mais perto de si. Deixei-me ir na brincadeira sem parar nunca a leitura. Os pés dele voltaram para os meus e começaram a subir pelas minhas pernas. Diabo, a leitura não lhe chega, ainda antes do jantar nos entregámos um ao outro… ainda… não pares… n.
Li, de uma ponta a outra, aquele livro magnífico, cheio de aforismos de cortar a respiração e escrito com uma poesia maravilhosa, quase… quase… até me falham as palavras, porque são as palavras que são belas por si e que embelezam as frases. Quando fechei o livro, alguma coisa estava errada. Ele olhava-me com uns olhos, que apesar de ainda belos, não eram os mesmo que eu admirava. Estavam habitados por uma sombra inesperada, uma sombra que lhe passou para o resto do corpo. As suas pernas estavam cruzadas atrás das minhas e encontrávamo-nos tão tão perto que lhe sentia o cheiro. Comecei a temer o pior.
“Que tens, não gostaste?”
“Gostei sim, adorei. É realmente belo. Especialmente aquela frase que diz que a poesia deve ser feita por todos.”
“Sim, também gostei muito disso. Mas há outras coisas muito bonitas aqui…”
“Sim sim”

E para meu espanto declamou toda a primeira parte do livro, sem qualquer hesitação.

“Não sabia que tinhas uma tão grande memória.”
“ «Tão grande memória» …unh… não diria tanto. É menos difícil quando se passou pelo que passei, quando se viveu o que vivi.”
“Pois, passaste uma grande tormenta. O naufrágio e tudo mais.”
“Eu não naufraguei.”
“Desculpa?”

As suas pernas começaram a fechar-se sobre as minhas.

“Onde arranjaste isso?”
“Como te disse, foi no dia que te encontrei de pé junto à cerejeira. Comprei-o a um livreiro num beco.”
“Só havia esse? Que mais lá estava? Não encontraste um outro volume chamado Cantos?”
“Não. Só lá estava este entre outros livros e pessoas.”
“Que te disse o livreiro?”
“Nada de especial.”
As suas mãos vieram ao encontro das minhas, retirando-me o livro, pousando-o no chão, e envolveram-nas. Pressionavam-nas, apertavam-nas, mais e mais e mais.

“O que é que te disse ele?”
“O que é que tens. Estás a começar a assustar-me. Magoas-me?”
“Responde-me de uma vez.”

De repente ouvi um estalo. Quando olhei para baixo, para o meu colo onde adormeceria os nossos filhos e lhes ninaria depois de um pesadelo, um dos meus dedos despontava apontando para o tecto de entre as suas mãos.

“Olha para mim.”
“Não consigo.”

Dois dedos, agora.

“Que mais te disse ele.”
“Pára, pára, pára, pára, pára…”

Parte-se o terceiro sem se dar por ele. Já não conseguimos raciocinar bem e já nem nos apercebemos o que está a ser partido, se ossos se o coração.

“Disse-me que o autor deste livro andava desaparecido há três anos e que antes deste tinha escrito um livro que era o completamente oposto a este. Mais nada.”
“Mais nada?”
“Juro.”

Com o mesmo furor e paixão com que me prendia os cabelos entre as suas mãos quando nos deitávamos e ele me beijava na boca e no pescoço, a minha cabeça foi puxada para trás bruscamente e a minha garganta encontrou os seus dentes. A salamandra já não devia ter combustível, porque de repente a sala ficou fria, à excepção de um finíssimo fio morno que me escorria para os seios.

“Mais nada?”
“…”
“Mais nada?”
“…”
“Mais nada?
“Juro. Mais nada, mais nada, nada, nada, nada…”

Desembaraçou a sua mão dos meus cabelos empurrando a minha cabeça de encontro à cadeira onde antes se sentara. Já não sentia o seu cheiro, melhor dizer qualquer cheiro, apenas um ligeiro sabor a ferro na boca, depois da cadeira embater na minha cara umas quantas vezes. E eu que pensava que não ficaria com a boca enfiada a não ser na velhice como minha mãe. Deixei a minha cabeça descansar um bocado na cadeira. Ou terá sido ele?

“Oposto como?”
“unh…”
“O livro era oposto como?”
“Um livro cheio de ódio, fel, atrocidades, assassinatos, estupros, infanticídios, maldições. Que era sobre uma personagem horrível, quase o próprio anticristo. Que se chamava M…”
“Maldoror”

Virei a cabeça para tentar olhá-lo. Ele encontrava-se ao pé da salamandra com um espeto de mexer na madeira a arder na mão. Abriu a portinhola. Afinal ainda ardia. Introduziu o espeto na salamandra.

“Está a arrefecer, não está?
“Sssim”.
“Estás com frio?”
“Sssim.”
“Queres alguma coisa para te aquecer?”
“Sssim.”

Ia remexendo o espeto no fogo e colocando mais um pouco de lenha na salamandra. Baixou-se para soprar lá para dentro. Que ridícula a posição em que ele se encontrava, como uma galinha pondo um novo ovo. Deixei-me cair da cadeira e estatelei-me no chão. Ele nem se preocupou, tão orgulhoso e arrogante estava, que nem parecia o meu adorado náufrago, aquele que me trazia flores e frutos, cogumelos e trufas, que me escrevia sonetos e rimas sabe lá Deus onde. Nem sequer me ouviu cair e a arrastar-me atrás de si. Não te deveria ter salvo, não te deveria ter salvo, não te deveria. Lembrei-me de todos aqueles dias, semanas, meses, os rebentos a brotarem, nascerem, a frutificarem, a caírem. E eu que pensava que ele era um anjo, que aquelas marcas de V invertido não eram mais que o lugar de umas asas cortadas. Afinal tudo aquilo era mentira. Mentira, mentira. Tu és mau, mau, mau, mau.

“Tu és mau, mau, mau, mau.”
“Sabes aquela história do escorpião que queria atravessar um rio? Bom, era uma vez um escorpião, sabes o que é um escorpião, não sabes?”
“Sim.”
“Bom, o escorpião depois de ter atravessado durante muitos dias um deserto enorme, dunas e mais dunas de areia escaldante, pedrinhas e pedregulhos, deparou-se enfim com um rio de águas cristalinas e calmas. Ele, que muito tinha andado com as suas pequenas patitas, tic tic tic dunas acima, dunas abaixo, o que não lhe custava por aí além porque a maior parte deles vive no deserto e este era um daqueles escorpiões negros que vivem no deserto, claro, sempre a ser fustigado por aquele sol abrasador do deserto…”
“Os escorpiões não andam durante o dia. Estão escondidos debaixo de pedras por causa do calor e só caçam à noite, estúpido.”
“Cala-te. Sou eu que te estou a contar a história e se eu digo que ele andava durante o dia era porque ele andava durante o dia e à noite dormia. Não. À noite também andava. Andava de dia e de noite, sem parar, duna acima e duna abaixo, por pedrinhas e pedregulhos.”

Aos poucos e poucos, com as minhas patitas, eu ia me aproximando dele arrastando-me no soalho.

“Bom, lá chegou ao rio e como tinha andado muito bebeu um bocado de água, escolheu uma sombra e deixou-se adormecer. No outro dia, de manhã, ele já não sabia muito bem onde estava, espreguiçou as suas patitas e começou a andar e, sem se lembrar que estava ao pé de um rio e sem ver a margem à frente da sua pinça, caiu à água. Esbracejou, esbracejou, ou patitou, patitou, até que conseguiu subir de volta à margem e pôr-se a salvo. «Que fazer agora, eu preciso de continuar caminho e chegar ao outro lado do rio, que fazer, oh, que fazer, coitadinho de mim, oh, oh». Estando ele naquele vai não vai, sem saber o que fazer, apareceu, sabes o quê?”
“Não, não sei.”

Continua, vai, continua a contar a tua história e entretém-te com o lume. Dá-me mais algum tempo, só mais um pouco de tempo, só mais um pouco, estou quase atrás de ti, não pares de contar agora, agora não pares de contar, não pares, não pares.

“Apareceu, tu nem vais acreditar, apareceu uma ovelha, não, uma vaca, assim daquelas malhadas e gordinhas e pestanudas, para beber água. O escorpião, mal viu a vaca, pensou logo que estava salvo, «ah, sagrada vaca», e pediu-lhe ajuda para atravessar o rio. A vaca, que já tinha ouvido falar daqueles bichos de rabo traiçoeiro, desconfiou e negou-lhe a ajuda abanando a cauda, «não, não, não, quando eu menos esperar picas-me e morro», «não, não, não» replicou o escorpião «eu não te pico, juro pela alminha da minha mãe, não posso picar quem me auxilia, oh por favor ajuda-me, sim, sim, sim, eu tenho de atravessar o rio senão sou eu que morro aqui e eu não o posso atravessar porque não sei nadar», e a vaca disse, «mas sempre me disseram para não confiar nos da tua laia, que vocês são maus por natureza», ao que o escorpião respondeu muito ofendido, «não somos nós que somos maus, são as circunstâncias que nos fazem ser maus, sim, sim, sim, as circunstâncias, não sabes que ninguém é mau por natureza?», e a vaca, que começava a apiedar-se do escorpião, disse, «sim, acho que tens razão, mesmo que se faça uma maldade aqui e ali, ninguém a faz por ser essa a sua natureza, vingança, sim, talvez, que se a faça inconscientemente, sim, porque não, mas apesar disso, posso confiar em ti?»; «sim, sim, sim, podes confiar em mim, não, não, não, não te pico nem na mão». Ora, a vaca, já completamente derretida pelo pequenino escorpião, decidiu ajudá-lo e deixou-o trepar para as suas costas. O escorpião, uma vez em cima do dorso, aninhou-se num fofo tufo de pêlo e deixou-se levar pela vaca malhadinha, gorda e pestanuda. O escorpião teve muita sorte em ter encontrado tão prestável vaca e grande como ela era nem a água lhe tocava. E lá foram sem tugir nem mugir, a vaca atravessando o rio fugindo às correntes e ele sempre sempre a dizer de si para si que não a picaria. Só que o rio era mais largo e fundo do que os dois esperavam e o escorpião começou a ficar muito nervoso. «Ainda falta muito, sim, sim, sim?» perguntava-lhe ele e ela, para o acalmar, dizia-lhe «Não, não, não, já falta pouco». Mas o rio parecia que crescia, pelo menos para o escorpião com os seus muito e vários olhos. Podes imaginar a aflição do escorpião, com tantos olhos de certeza que via mais água do que a vaca que só tem dois. Estava cada vez mais nervoso com tanta água e demora. «Ainda falta muito, sim, sim, sim?» perguntava-lhe ele e ela, para o acalmar, dizia-lhe «Não, não, não, já falta pouco». Até que o nosso pequeno amigo não aguentou mais e desferiu na pobre vaquita uma picada que era a súmula de tanto nervosismo, ficando seco de veneno. A vaca voltou o seu focinho para o escorpião e olhando-o com os seus olhos com a vida a definhar-se pestanejando muito as suas longas pestanas diz-lhe «Mas tu tinhas jurado, assim morremos os dois». E morreram os dois.”

Consegui esticar a mão, estava mesmo atrás dele. Ao seu lado estava um outro espeto. Silenciosamente agarrei-o com a fineza que os meus três dedos me permitiam. Soergui-me e enfiei o espeto pela nuca até sentir a maçã-de-adão a estilhaçar e o espeto encontrar a madeira a arder. Morre, morre, morre, morre, morremorremorre.

“Então gostaste da história, é bonita não é? Sabes qual é a moral desta história? Nunca se deve confiar num escorpião”.

Ele voltou-se para mim com os olhos mais negros que alguma vez vi. Todos negros, sem branco nenhum. Com uma mão só, arrancou-me a roupa e atirou-a para dentro da salamandra enquanto segurava ainda no espeto que se encontrava ao rubro. Com a sua mão livre desviou-me os cabelos da vista, ondeou-os por trás da orelha e foi deslizando a mão pelo rosto. Introduziu uns quantos dedos na minha boca abrindo-a mais sem me permitir trincá-lo, que era o que mais queria depois de ter imaginado a nossa vida em conjunto e a sua morte pelas minhas próprias mãos. Brincou com os meus lábios, apertando-os. Depois foi passando aquela mão húmida, que segurou tão carinhosamente um rebento de cerejeira, pelos meus seios, a minha barriga, as minhas coxas, até que me segurou a minha perna direita e a afastou da outra. Ia se aproximando de mansinho de joelhos com o braço direito erguido atrás das suas costas segurando o espeto aquecido até ao rubro. Ria-se. Fechei os olhos. Nem quero imaginar…








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