sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Uma cereja em Setembro

VII

De um ramo da cerejeira cresceram flores, das flores tivemos frutos, que ficaram maduros e depois, os que não colhemos, caíram. Os momentos que partilhávamos juntos iam passando a horas, de horas a dias, de dias a semanas e de semanas a meses. Estávamos agora a entrar no Outono, a minha estação favorita. Pode não se notar muito para quem mora numa praia, mas o aroma do ar muda completamente. Para lá das costas das dunas há campo e daí chegam-nos os cheiros das folhas caducas e musgos que rebentam nas cascas das mesmas árvores. O que para mim me evidencia a passagem sazonal e isso é que é importante. Posso não ver a mudança das cores nas folhas, nem a sua queda temporária. E não é só o cheiro no ar que muda e me diz “é outono”, mas o próprio mar tornando-se de um azul cinzento muito belo e a força do vento. Mas é tudo mentira. A cerejeira é o meu calendário.
Íamo-nos aproximando aos poucos e poucos. De você passámos a tu. Quem nos visse dir-se-ia que já nos tínhamos casado, porque andávamos sempre juntos. Podíamos não falar muito um com o outro, contudo adivinhávamos os pensamentos de um e do outro, tal como alguns casais o fazem. Ele saía muitas vezes para passear e trazia-me flores e frutos, cogumelos e trufas. Escrevia-me de vez em quando uns sonetos, rimas tiradas sabe lá Deus onde, que muito me tocavam. E ao serão líamos um para o outro muitas das obras que figuravam lá na biblioteca. Ele era um homem extremamente calmo, muito seguro de si, sem transparecer qualquer arrogância ou maldade. Mas uma vez ou outra apanhei-o a mirar-me de alto a baixo, ora para o feitio roliço de minhas ancas, ora para os meus seios redondos que sobressaíam do meu vestido. Ele era um homem, disso não há dúvida. Mas nunca me olhou com aquela lascívia que muitos homens olhavam para minha mãe, que ainda era bastante nova quando perdeu seu marido, quando ambas andávamos pelo mercado da cidade, ou para mim. Não, não havia lascívia, mas apetite, desejo. Também não nego que o mirei uma vez ou outra. Para aqueles olhos azuis de céu, aquelas mãos grandes e nodosas de veias palpitantes, aqueles cabelos negros de corvo, os seus lábios vermelhos e carnudos… e sim, uma vez apanhei-o desprevenido a banhar-se na tina ao pé da cerejeira e vi-o. Acho que ele não me viu. Mas eu sim. Fiquei escondida a vê-lo. Ou então ele sabe fingir muito bem.
Não dormíamos juntos. Eu continuava a dormir no meu quarto, enquanto ele no quarto de meus pais. À noite ouvia-o dizer umas quantas palavras naquela língua que desconheço, outras pressentia-o por trás da minha porta enquanto adormecia com uma maior sensação de segurança. Vivíamos bem. Penso que nos começávamos a amar um ao outro.

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