quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Uma cereja em Setembro

VI

Uma vez chegada a casa fui acometida por um desespero sem nome. Onde estava o meu amor? Para onde teria ido quando ainda estava tão frágil, tão criança ainda? Larguei tudo no chão num pulo do coração, ficando ali aterrada na soleira da porta com as duas mãos escondendo a boca. Devo ter permanecido de pé uns bons minutos sem conseguir entrar para dentro de casa. Só os meus olhos e ouvidos viraram e reviraram cada canto, cada mobília, cada quarto. Nada. Ninguém se encontrava lá dentro, não via nem ouvia nada. Até que, do exterior, nas traseiras da cozinha onde agora se encontrava a cerejeira morta ouvi alguém tossir. Corri ao encalço daquele sopro rouco e lá estava ele a segurar um rebento de flor da cerejeira, de tronco nu, do único ramo que sobrevivera. Ele deveria estar realmente muito doente para nem sequer se aperceber que ainda estávamos no inverno, houvesse ou não rebentos a florir na árvore, e para andar naqueles preparos.
Reparei então que as suas costas estavam cheias de marcas e cicatrizes, dois golpes estranhíssimos nas espáduas quase em V invertido. Como já me encontrava muito perto das suas costas, senti a tentação de estender a mão e tocar-lhe, mas arrependi-me de imediato. Não tinha aquele direito. Nem sequer o conhecia. Mas não deixei de não sucumbir àquelas costas que por muito devem ter passado. A sua respiração estava pesada e irregular. Eu nem me atrevia a pronunciar uma sílaba, não o queria assustar como ele me tinha feito. De repente sussurrou umas palavras: “Não se pode julgar a beleza da vida senão pela da morte” e depositou aquele rebento numa pequena cova que abriu com as suas próprias mãos e a qual tapou com a maior das delicadezas. Lembrei-me de minha querida mãe, depois de ter recebido a notícia da morte de meu pai e irmãos. Acho que pela primeira vez alguma coisa parecida com uma lágrima se abeirou dos meus olhos, mas não seria correcto da minha parte reconhecer aquela humidade como uma lágrima visto não ter termo de comparação e, naquele momento, ninguém me confirmar se de uma lágrima se tratava ou de um reflexo dos olhos para com o vento que se levantara ligeiramente. Soltei um ligeiro gemido. Como se não me tivesse ouvido ergueu-se com a maior calma que lhe possibilitava o corpo cansado. Uma vez de pé, apenas rodou a cabeça, fitando-me de esgueire com o seu azul, apoiando o queixo no seu ombro.
“Peço desculpas se o assustei.”
“De maneira nenhuma. Já a tinha ouvido chegar.”
“Porque não se encontra na cama, ainda está muito enfermo.”
“Precisava de esticar as pernas.”
“Sente-se melhor, portanto.”
“Como se tivesse renascido.”
“Bom, de certa maneira, foi o que lhe aconteceu. Esteve de cama três dias e noites seguidas, com febres altíssimas, quase sem comer.”
“Percebo. Mas já me sinto deveras melhor. Pode-me dizer onde estou? Oiço que não fala a minha língua, ou eu não falo a sua, visto estar na sua terra e na sua casa.”
“Sim. O senhor descobre-se em terras lusas, na terra das laranjas como meu pai me dizia que os pagãos das arábias chamavam este país.”
“E as laranjas, onde estão?”
“Onde a miséria não mora.”
“Compreendo.”
“…”
“…”
“Não quer…”, nem me deu tempo de acabar a frase e de novo me caiu nos braços.
“O senhor não se deveria ter levantado, ainda está muito fraco. Venha, eu ajudo-o a voltar para dentro de casa. Apoie-se em mim”.
E assim fez, envolvendo-me a cintura com o seu braço, como se fosse ele quem me ajudava, o que de seguida corrigi para que mais facilmente voltássemos para dentro. Amparei-lhe a queda na enxerga, para não se magoar, agradecendo-me com muita polidez.
“Vou preparar-lhe um caldo de peixe para recuperar as suas forças e verá que logo logo se põe de pé como um verdadeiro renascido. Em três segundos estará pronto.”
“Agradeço-lhe a sua bondade.”
“Ora, não tem de quê.”
Mal virei as costas, encaminhando-me para a cozinha, fechou os olhos adormecendo. Mas ainda o ouvi, numa língua que desconheço e me estremeceu a espinha.

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