segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa) - Uma cereja em Setembro

III

Por três dias e três noites dormiu o homem. Três longos dias e noites em que estive imóvel do seu lado, como fiquei do lado de minha mãe enquanto desfalecia aos poucos e poucos. Não me mantive sempre completamente imóvel, claro, procurei ajudá-lo em tudo que podia. Dava-lhe água, sopa, mudava-lhe os panos frios quando ardia em febres altíssimas, tudo isso durante o seu sono.
A terceira noite foi a pior de todas desde que ele cá chegou. A tempestade tinha reatado todas as suas forças. Parecia que Deus nosso senhor expulsava uma vez mais o seu anjo mais adorado e para sempre seu arqui-inimigo. Fortes ventos vindos do norte sopravam atrozmente, metendo medo ao mais valente soldado e à besta profana mais temerosa. A própria boca do inferno tinha-se aberto ao mundo, soltando todos os lamentos das almas assassinas, criminosas e pecadoras que por lá fizeram sua morada. Troavam brados vindos do céu mais negro que alguma vez tomei conhecimento. As mais poderosas trombetas da revelação de S. João bradavam para lá das nuvens, no altíssimo reino. Torrentes de água tombavam sem a mínima explicação natural. Um novo dilúvio, mais aterrador do que o do tempo de Noé, sem salvação à vista. Não poderia fazer mais nada senão rezar ao Todo-Poderoso e Clemente Deus que nos perdoasse.
Pouco havia a fazer perante tamanha calamidade. O fogo continuamente se apagava, malogradas as minhas tentativas de manter o nosso lar tão afável quão o cuidado de alguém pode ter por outro. E pior que tudo, a febre daquele sujeito, com os mais belos olhos que alguma vez vi em toda a minha vida, conseguia ser mais quente que o calor que meu próprio lar lhe fornecia. Estava desesperada, correndo de um lado para o outro, ora ateando a chama, ora aliviando o seu corpo daquela temperatura mafarrica. Eu própria não sei como também não caí de cama, tal era a minha canseira, o frio e como estava ensopada de suor como o moço moribundo. Terei trocado de roupa umas quantas vezes, mas de nada me servia porque logo a seguir me encharcava em trabalhos de santa.
No meio daquele lavor, o meu querido doente foi acometido de delírios extravagantes. Umas vezes pondo-me a mão sabe Deus que proíbe, o que muito me ruborizou, outras segurando-me a mão, que muito me apertava o coração deixando-me a alma em cânticos ao Senhor e a seu Filho, outras ainda que me chocou deveras com tanta insensatez e imaginação. Eu perguntava-lhe:
“O que me quer dizer?”
E ele – pensava eu que me respondia – murmurava numa voz côncava:
“O céu escurecia, tornando-se de um negro quase tão horrendo como o coração do homem… o vento desfazia as velas. Os trovões estalavam entre os relâmpagos… os abalos entreabriram um veio de água nos flancos do navio… o navio afunda-se lentamente… majestosamente… a sorte nas mãos de Deus… afunda-se lentamente… majestosamente… nenhum homem tem como antepassado um peixe… futuro afogado… eles estão a sofrer mais… estão perdidos… estava obrigado perante mim mesmo a cumprir a minha promessa: a última hora tinha soado para todos, e nenhum podia escapar… se fosse um cavalo ou um cão deixava-o passar… sei muito bem tudo o que faço… de pé em cima do rochedo… rés-do-chão do mar… que legião é aquela de monstros marinhos que vai cortando as ondas rapidamente… majestosamente… tubarões… seis… omeleta sem ovos… o sangue mistura-se com a água, e a água mistura-se com o sangue… uma fêmea esfomeada… pasta de fígado de pato… cozido frio… nata vermelha… espingarda à cara… menos um… mergulho do penhasco… faca… frente a frente homem e fêmea… corpo do objecto amado… sargaço…”
“Chh, tenha calma, beba mais água, está desidratado”, dizia-lhe eu abismada com aquele sonho que lhe saía da boca gretada. “Não fale que se cansa”. E agarrava na sua gélida mão enquanto lhe afagava o rosto húmido e pálido.
De repente o homem vira os seus magníficos olhos para mim e desta vez parecia realmente que me mirava, mergulhando nos meus olhos, para me depositar na minha alma as palavras mais surpreendentes, numa voz já não cava mas doce:
“Encontrei alguém parecido comigo… já não estou só na vida… estou diante do meu primeiro amor!”. Voltou a adormecer, mas a febre já começava a definhar.

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