segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

meu amor morto e o seu caderno preto (uma narrativa)

1.

Fiquei durante muito tempo a pensar no que deveria fazer de ti,
o que fazer contigo. Depois de
tantos anos juntos e no fim
não sei o que fazer. Não sei mesmo
o que fazer de ti.
Ando de um lado para o outro nesta casa,
caminho
quilómetros
para a frente e para trás,
de divisão em divisão, atravesso
países, mínimos mundos
separados por portas e não estás aqui.
Nunca pensei que uma tão pequena casa se tornasse tão longa,
larga, escura e eu tão minúscula. Detesto
fazer estas arrumações,
empacotar toda a minha
roupa, livros, discos, escolher
entre todos os papéis que se guardam
aqueles que, afinal, realmente queremos guardar,
aqueles que ainda nos dizem qualquer coisa. Cartas,
por exemplo, bilhetes de viagens, postais, flores secas,
ramos de árvores, guardanapos com mensagens
de quem já não nos lembramos o emissor.
Demoro horas nestas recordações forçadas enquanto te procuro
no meio delas. Aqui em casa
encontrei apenas o teu caderno, o teu caderno preto
onde costumavas escrever o que calhava,
quando te apetecia escrever. Falavas-me sempre
desse teu caderno mas eu nunca o vira, até hoje.
Nem sei o que poderia lá encontrar.
Pensei que
talvez, talvez te encontrasse dentro dele,
como tu me encontraste, me descobriste
na rua. Tantos anos juntos, tantos anos
a partilhar o mesmo espaço, a mesma cama,
as almofadas, a roupa, a sanita, o bidé, os pratos, os copos, os talheres.
Chegou a ser uma pequena vida,
uma pequena vida de pequenas coisas
que a fazem, que nos fazem dizer: esta foi
uma pequena vida, a nossa.
Nunca percebi ao certo os teus hábitos,
as tuas manias, porque davas tanta importância
a coisas tão inúteis, ínfimas, tão
piquínhas, as tuas pequenas coisas
como beber daquela chávena lascada
vertendo o teu café pela falha em cada golo.
Como também nunca percebi a razão
de acordares cedo se não fazias nada
a não ser tomar o pequeno-almoço, fumares
cigarros logo de manhã empestando a casa, abrir
um livro para passeares os olhos, abrir
o teu caderno para passeares as mãos
e não fazias nada. Até hoje
pensava que nada fazias, mas estava enganada.
Enganavas-me com os teus passeios
e os teus olhares e afinal
afinal escrevias, embora não
se visse nada.
Nada no papel, nada no computador.
Não escrevias para fora,
escrevias para dentro, se assim posso dizer.
Conheço agora a tua produção silenciosa e anónima,
as tuas transformações, os teus devaneios,
as tuas idiossincrasias, as tuas repetições
(“repete repete”, como diz um daqueles poetas que tanto gostavas).
Não te sabia o corpo tão escrito, tão gritado.
Eu juro que te escutava, juro que sempre te quis
bem quando te deixava ocupado com os teus
nadas, com os gatos deitados lá no pátio,
sozinho em frente ao computador, dos livros,
do caderno, da louça suja, da comida para se fazer,
da roupa para lavar, na casa por limpar. Juro
que te levava comigo quando ficavas sozinho em casa.
Nos meus tempos livres eras a minha ocupação, o meu
hobby, o meu su doku, as minhas palavras
cruzadas no meu agora coração partido. E agora?
Agora não sei o que fazer de ti e tenho vergonha.
Não sei se te traga para casa, se arrumo
as tuas coisas. Antes dizia, como tu,
as nossas coisas, enquanto hoje
digo as tuas e as minhas coisas
e tenho vergonha
porque me olham, ainda me tocam,
ali dos cantos para onde as empurrei.
Deixaste-me tudo e envergonho-me
de ter feito a sua lista: umas quantas
camisolas de lã, t-shirts, long sleeves
− todas uniformes, sem desenhos e ratadas pelas traças
− calças de ganga e de bombasina e de algodão fino,
cuecas, meias, um par de botas, dois pares de ténis,
livros (muitos), cassetes de música (que já não ouvias)
cd’s, folhas soltas, bugigangas, tralha, canetas, lápis,
uma escova de dentes, uma máquina de cortar cabelo,
um chapéu preto (prenda minha), gatos (dez no total)
e a tua bicicleta, a tua maldita bicicleta, espatifada.
Não me poderias ter deixado o raio de uma fotografia?
Uma só? Bastava uma, com a tua cara barbuda, os teus olhos
verdes, a tua pouca fotogenia, de cigarro na boca,
as tuas mãos sapudas, o teu sorriso de dentes fumados.
Esta lista deixou-me
fatigada. Levei um certo tempo a apontá-la
mas não conseguia dormir. Por isso
decidi manter-me acordada mais um pouco, bebendo
uma chávena de café e lendo
o teu caderno preto. Quando me sentava
no nosso sofá de tantas noites
à espera do sono, parti
a tua chávena de café preferida e procurei
colá-la. Não te queria perder
aos bocados.

NOTA: irei pondo, aos poucos e poucos, esta narrativa escrita em 2008, criada a partir de monólogos e contos. eis, pois, o primeiro monólogo).

2 comentários:

Sílvia Ribeiro disse...

gostei... já espero o próximo!

fernando machado silva disse...

obrigado. a seguir virá o primeiro conto, só depois o segundo monólogo.