segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Adolfo Bioy Casares



Título - Plano de Evasão
Editora - Cavalo de Ferro
Tradução - Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu


As ilhas são coisas misteriosas, mistérios solidificados, corpos desconhecidos, de segredos, de estranhos sentidos. A toda a sua volta o mar, um rumor incessante, como uma confissão murmurada de um crime e no entanto imperceptível, que vem, que vai, com a duração da espuma, que vem, que se esvai. E por isso, talvez, nenhum mistério, nenhum segredo, somente o deslumbramento, a faustosa fauna e flora, ou o deserto de negras pedras vulcânicas, fragas, faldas, dunas, sargaços, areia branca, o azul e verde do mar, o céu e a terra e a água tocadas no horizonte, pelo horizonte.
Haveria de se fazer uma historiografia, porque não, das ilhas na literatura, de como são vistas, escritas, construídas, entendidas, como servem simultaneamente de exemplo de pequenos Édenes e Infernos, moradas livres e prisões, de Homero a Herberto Helder – e em Portugal tantas ilhas foram escritas, Brandão, Nemésio, Fátima Maldonado, Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge e tantos mais –, porque não, passando por Thomas More, Shakespeare, Camões, Melville, Julien Gracq, Adolfo Bioy Casares e tantos outros que não conheço. Estes dois últimos autores acabados de citar, por exemplo, parecem-me muito próximos, ou pelo menos assim julguei sentir. Enquanto lia “Plano de Evasão” tantas vezes me recordava dessa lenta e misteriosa obra “A Costa das Sirtes”. Porém nada têm em comum, nada uma a ver com a outra, já nem me lembrando se na segunda é de uma ilha que se trata, embora seja essa a memória que guardo. Mas o que há no “Plano de Evasão” e quem foi Adolfo Bioy Casares?
Casares (1914-1999), escritor argentino, com uma extensa obra narrativa, foi considerado pela mais impressionante voz da América do Sul de língua castelhana, Jorge Luis Borges, como um dos maiores escritores dessa parte do Continente. De um enorme domínio linguístico, uma imaginação que fascina, grande conhecedor da literatura mundial, conduz em cada obra o leitor a um mundo onde o real se vê metamorfoseado em maravilhoso, não de uma forma em que se perde a noção da realidade mas bem num sublinhar dessas partes feéricas que todos os dias o mundo nos oferece, se estivermos atentos, despertos. A sua obra inscreve-se de modo singular na arte literária, fabricada quer na sua solidão autoral, quer partilhada com Borges (temos acesso a ela nos dois volumes, publicados pela Teorema, das Obras Completas Partilhadas do homero argentino) ou com a sua, de Casares, esposa Silvina Ocampo (recentemente editada pela Oficina do Livro). E, para exemplo do que disse, chegamos a – do real e do maravilhoso misturados na escrita – “Plano de Evasão”.
Surgida em 1945, esta breve narrativa desconstrói com esmera mestria o romance epistolar ou diarístico. O narrador conta-nos a história, com certa frieza e distância, através das palavras do seu sobrinho – saltando entre a apresentação de cada missiva e as interpretações que de cada uma faz –, que lhe vai endereçando e relatando os seus medos, as suas inquirições, investigações sobre os segredos que envolvem o governador das ilhas prisionais Royale, São José e do Diabo. Cada linha está mergulhada em mistério, da primeira à última; cada personagem se vê enredada num halo de enigma que nos intriga de capítulo a capítulo. O próprio sobrinho, descobrimos aos poucos e poucos, não está isento de segredos. Terá sido enviado por seu pai para evitar um escândalo familiar: Henrique Nevers, o sobrinho, ama uma mulher, Irene, mas a sua relação, se assumida publicamente, trará graves problemas porque outro membro do clã, seu primo, ama Irene – quem afinal está prometido, isso não se sabe, ninguém realmente tem a certeza e, na verdade, isso pouco nos interessa sempre que caímos na trama da ilha. O tempo resolverá a questão, cremos nós em simpatia com Henrique. Porém, o tempo nas ilhas, ou melhor, o tempo que Henrique passa nas ilhas, duração que o permite avaliar o passado enquanto vai descortinando porque o governador Castel é visto com tão maus olhos pela população de Caiena e adorado pelos prisioneiros e seus auxiliares, apenas o afunda num cada vez mais profundo inferno e nós com ele. Castel fabrica, compreendemos já no fim, um processo de aprisionamento e simultânea libertação que abalaria todas as instituições da Ordem e da Lei, mas também o que significa ser humano. É tenebroso seguir o trilho de mortos, de sinais, que Henrique relata ao seu tio. E está tão belamente exposto por Casares que só resta lê-lo e relê-lo.

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