domingo, 19 de dezembro de 2010

Georges Perec - Um homem que dorme



Autor - Georges Perec
Título - Um homem que dorme
Editora - Editorial Presença, col. AURA
Tradução - Maria Jorge Vilar Figueiredo


Adormecer é o momento de mais intensa solidão.
Podemos ter um corpo ao nosso lado, o corpo amado, o filho, o amigo, esse outro corpo qualquer que cremos – veramente cremos, fora de todo o racionalismo, como toda a verdadeira e justa crença é – no mais íntimo e com o mais íntimo de nós – com a emoção afásica, muda, sem palavra, impossível de ser dita e à qual recorremos com metáforas e conceitos já tão gastos como amor, coração, amizade, fraternidade, etc. – mas nunca estaremos tão sós quando nesse instante. Somos nós e estamos nós só, só nós, sós, perdidos e achados, irremediavelmente perdidos e achados por ninguém, a ninguém, senão a nós, entregues, estendidos somente a nós. E num instante, como só os instantes são, dá-se uma suspensão. Num instante, nesse instante antes de adormecer, nessa maior solidão, dá-se uma suspeita, como só as suspeitas são: breves, negativas, anti-gravíticas, peso imenso, suspensão que nos empurra para o mais fundo sem deixar de ser uma suspensão, porque se retiram todos os pesos das crenças, do bom senso, do senso comum; é quando a solidão aterra, quando faz sentir todo o seu peso, quando a própria vida se deixa pesar, pensar.
Adormecer, suspeita, suspensão, inquirição, solidão… talvez este seja o trajecto próprio da insónia. Estamos lentamente num processo jurídico em que nos representamos e representamos cada figura jurídica, legal e ilegal. Somos, por momentos, o réu, o acusador, a testemunha, a defesa, o júri, o juiz, meirinho, o crime, a absolvição, a própria pena – tão suspensa quanto nós, mas tão pesada e sentida como tudo é nesse instante. Tudo é exponenciado, a atenção volta-se e centra-se à vez em cada vibração peculiar, particular, de cada coisa, cada vez mais pequena e insignificante. Os menores pormenores – inatendidos, relegados, na vigília do dia, a nada serem, a nada dizerem – não são mais pormenores, mas mundos em si maiores que o mundo, transbordando-o. Que absurdo tudo é nessa distância reduzida do mundo. Tudo fosco, sem luz, sem brilho, sem mistério. O que resta senão a deambulação pelos caminhos do mundo baço, pelas ruas, o olho vagueando pelas vitrinas, as flores, as árvores, ocupar o tempo enchendo o seu oco, preencher o vazio que se instala do corpo para fora, superfícies, superfícies.
Mas isto tudo nada mais é do que palavras, as minhas para circundar a bela novela, ou conto, “Um homem que dorme” de Georges Perec.
O autor, Georges Perec (1936-1982) foi considerado um dos maiores escritores franceses do pós-guerra, com uma extensa obra romanesca, ensaística, passando pelo cinema como argumentista. Pertenceu, ao lado de Italo Calvino, Raymond Queneau, entre outros, ao grupo OuLiPo – Ouvroir de Litérature Potenciel – associação internacional que combinava escritores, artistas plásticos (Marcel Duchamp) e matemáticos, e se dedicava a libertar a literatura dos seus constrangimentos através da imposição de certas regras, certos jogos, determinadas pelos autores. Como exemplo, uma das mais fantásticas obras de Perec foi, ou é, o livro “La Disparition”, na qual o autor eliminou a letra “e” – como seria traduzido em português? Quem se atreveria a traduzir o que é quase intraduzível? –, a mais comum na língua francesa. Outro exemplo de renome é, por exemplo, o seu fantástico, complexo, matemático e labiríntico romance “Vida modo de usar”, gigantesco puzzle de ficção literária.
Mas falemos de “Um homem que dorme”.
É-me muito difícil caracterizar este livro – sinceramente todos o são – porém tentemos. Será um conto em forma de relato, ensaio romanceado na primeira pessoa sobre esse instante que procurava, ainda há pouco, elucidar, de intensa solidão? Parece bem que sim. “Mal fechas os olhos, começa a aventura do sono.” (p.11), mas o sono não vem. O que chega é o mundo, um mundo a duas dimensões, interior, que, guiado por um movimento centrífugo, espiralado, que vai conquistando uma terceira dimensão, o mundo exterior. A insónia, a solidão, instala-se e o mundo agora conquistado perde toda a sua profundidade. A personagem enovela-se na trama do absurdo que tudo se lhe afigura, perde toda a vontade menos a de seguir vivendo. Caminhar, olhar, inquirir ou indicar somente o absurdo de tudo. Torna-se uma personagem bartlebyana; aliás, Perec, quase no final do livro (vd. p. 95), resume num parágrafo de poucas linhas o conto de Melville, acabando por determinar a origem parental da personagem de “Um homem que dorme”.
A sua viagem, todavia, é dupla – como todas as viagens, ida e volta, do “centro” de si ao mais fora de si e de novo a si – e terá fim. Começamos mesmo, como já indiquei, com a personagem a preparar-se para a aventura do sono e dá-se a suspensão. O absurdo começa com o seu corpo, cada elemento, parte para a cama, cada elemento, o quarto, o seu e o do vizinho, o prédio, a rua, o café, o jardim, a cidade, a deambulação em busca de significado até à mais angustiosa solidão em sintonia com a recusa do mundo. E uma vez sentida, tomando conta de toda a realidade, como um Ulisses, a personagem “recentra-se”, faz o caminho de volta, como que resignado mas já com uma resposta. E com a sua solidão – “ (…) um engano, uma ilusão fascinante e armadilhada. (p. 98) – e medo, espera, espera o fim de qualquer coisa, o fim da chuva, ou alguém que faça com que a solidão se resigne, também ela, a surgir somente no sono ou na morte.
Um livro que nos tira o sono e que dá vontade de partilhar.

5 comentários:

tempus fugit à pressa disse...

é é muito difícil caracterizá-lo

lento escorre impinge ilusões de intelectualidade

é como ler o Tramp Steamer e encontrar uma obra de arte

e daí cada um tem os seus kilimanjaros culturais e as suas serras dos candeeiros

Anónimo disse...

fixe, era capaz de ler esse livro.

fernando machado silva disse...

caro الرجل ذبح بعضهم البعض ولكن الخيول (desculpa não ter apanhado o teu nome todo) e caro anónimo, agradeço terem por aqui passado.

anónimo: o livro é bom, eu, pelo menos, gostei de o ler.

الرجل ذبح بعضهم البعض ولكن الخيول: não sei se está a gozar comigo ou não. pessoalmente, já me começa a chatear o facto de que na "blogosfera" para se ser fixe, intelectualmente irreverente e superior, se tenha de constantemente criticar e dizer mal dos outros. espero que este não seja o caso. também, se o fôr, não há nada que eu possa fazer. mas, quanto ao livro: depreender da apresentação de um livro que se gostou uma espécie de kilimanjaro cultural, realmente é não conhecer o outro e cair no fácil preconceito. gosto de ler e escrevo apresentações de livros para um jornal do alentejo (não faço parte de nenhum lobby e somente cumpro um favor que um grande amigo me solicitou, porque não tinha tempo), livros que me parecem ser interessantes e outros de que gostei muito de ler.

bom, o mais certo é ter lido mal o seu comentário. um abraço aos dois. boas festas e boa passagem de ano.

André C. disse...

Belo texto. Cresceu em mim uma vontade enorme de comprar o livro. Parabéns pelo blog, há muito que o acompanho.

fernando machado silva disse...

caro andré c.,

obrigado pelo comentário, por apreciares o blog e ainda bem que o texto funcionou.

um abraço